quarta-feira, julho 06, 2005

Escrever

A Feira

Rui entrou numa casa muito velha atrás dos seus amigos. Era a noite perfeita para experimentarem todo o tipo de aventuras e a antiga feira era o local indicado para quem queria emoções fortes. À sua frente Vasco avançava muito devagar com medo do que podia estar atrás de cada esquina, Rui olhava para ele e pensava como era possível que o seu melhor amigo fosse casar daí a uma semana. Lembrava-se ainda de quando eram novos e passavam o dia a brincar no bosque perto da casa dos seus avós e agora estavam ali, a última vez que podiam estar juntos antes de tudo mudar. Sentia um pouco de ciúmes do seu amigo, embora também o invejasse por ter algo que nunca conseguira ter, por ter algo que também desejava.

A casa estava completamente abandonada ou assim queriam que parecesse, sabia bem o tipo de partidas que ia ter de enfrentar e não se preocupou muito. Desde cedo que era poucas vezes surpreendido e não ia ser diferente desta vez. Mas o sentimento não era partilhado pelos outros que gritavam no meio da confusão que se tinha instalado. Uma dúzia de rapazes que tinha voltado aos tempos em que eram livres, uma brincadeira de crianças num mundo de adultos que não sentiam ter crescido.

Saíram da casa entre risos e empurrões e olharam para a rua a tentarem decidir onde iriam a seguir, que divertimento esquecido iria ser experimentado uma última vez? A feira parecia mais abandonada do que nunca e parecia que tinha escolhido aquela noite para se despedir também de alguma coisa, para se despedir de tantas histórias passadas no meio daqueles muros e de casas com cores engraçadas. Seguiram para a tenda do circo.


O circo

A tenda do velho circo era enorme e ocupava uma grande parte do recinto da feira. Rui lembrava-se de assistir aos espectáculos de sábado à tarde com o seu avô enquanto comia algodão doce. Ainda conseguia ver os fatos brilhantes dos trapezistas e ouvir os leões que desafiavam o chicote do domador vestido de vermelho. Eram tempos sem preocupações e tinha saudades, tinha saudades de descer a rua de mão dada com o avô e contar as riscas coloridas da tenda. Chegava a dar uma volta inteira à tenda para contar quantas riscas de cores diferentes conseguia contar, nunca chegava ao fim com a mesma contagem.

Hoje o circo já não existia e apesar de não vir a este local há muito tempo sabia que lá dentro ainda se podia assistir a algum tipo de espectáculo, algo desfasado do tempo tinha a certeza e que ajudava a dar uma estranha mística a todo aquele local que parecia lutar para não desaparecer. Esta noite ele e os amigos tentavam que isso não acontecesse, tentavam gozar o mais possível numa só noite. O amanhã não importava.


As seis gémeas

Quando entraram deram de caras com uma visão bizarra. Dentro da tenda não existia nada, estavam apenas debaixo da lona e das luzes que estavam presas na parte de cima. As antigas bancadas de madeira tinham desaparecido, o que fazia com que o espaço parecesse muito maior, como se tudo à sua volta desafiasse a lógica e não combinasse com o que tinham observado de fora.

Mas não estavam sozinhos. No meio da tenda seis cavalos troteavam em circulo, tendo cada um deles por companhia uma rapariga vestida de preto e cabelos compridos. No meio uma senhora mais velha segurava um microfone e pedia para se aproximarem enquanto apresentava as irmãs. Seis gémeas idênticas que iam rodando à frente do grupo de amigos que não podia deixar de ficar de boca aberta perante tal visão.

Rui ia ouvindo os nomes das irmãs enquanto iam desfilando em cima dos cavalos, Marlene, Marta, Margarida, Madalena, Magda e Maria, um estranho conjunto de nomes para um estranho grupo. Eram perfeitamente iguais e por mais que tentasse não conseguia descobrir diferenças entre elas, parecia que estava a ver sempre a mesma imagem, uma rapariga de cabelos compridos, vestida de negro cavalgando em cima de um cavalo também ele negro. Era como se estivesse a ver um filme projectado à sua frente em câmara lenta.


A escolha

Todos sabiam que toda aquela encenação devia ter algum sentido, mas não tentavam sequer adivinhar que tipo de divertimento lhes iria ser proposto no meio de tão estranha visão. Então a mulher mais velha falou e pediu-lhes que se aproximassem. Disse-lhes para se posicionarem à volta do circulo pois uma escolha iria ser feita, uma escolha que iria mudar a vida de um deles. Ouviram-se risos, mas a mulher manteve uma expressão muito segura, como se soubesse alguma coisa que eles desconhecessem. Não deixava de ser uma cena assustadora e Rui sentiu um pequeno tremor a percorrer-lhe o corpo enquanto obedecia e se aproximava do meio da tenda.

A mulher continuou a falar e explicou que uma das irmãs iria escolher um deles e que essa escolha traria um novo caminho para o escolhido. Era uma situação cada vez mais estranha, ali estavam todos à volta de seis irmãs que olhavam-nos nos olhos e pareciam procurar um deles para fazer uma escolha que supostamente iria mudar uma vida. Noutra altura Rui teria rido de tudo aquilo, mas naquela noite não foi capaz. Tinha um pressentimento em relação a tudo e manteve-se calado a olhar.

Os cavalos andavam mais devagar e Rui olhava para as irmãs que iam passando, nem sequer sabia qual delas iria fazer a escolha. Mas de repente e sem saber bem como pareceu reparar num olhar de uma delas, parecia que sem o mostrar muito uma das raparigas olhava para ele de forma diferente cada vez que passava por ele. Não acreditava que ia ser o escolhido, seria possível? Não lhe apetecia muito ser alvo do gozo dos amigos e tentou desviar o olhar, mas não conseguiu deixar de olhar para a rapariga que agora conseguia distinguir perfeitamente entre as outras. Tudo parecia ser demasiado entranho e fechou os olhos à espera.


O escolhido

Os cavalos pararam e a mulher de pé disse que a escolha estava feita. Foi com um enorme nervosismo que Rui viu a rapariga que olhara para ele descer do cavalo e dirigir-se para o centro da tenda ficando ao lado da mulher que pareceu ter alguma coisa para dizer antes de anunciar o escolhido. E falou numa voz mais baixa, avisou que aquela escolha não devia ser desprezada nem levada pouco a sério, disse que o escolhido podia seguir o caminho que quisesse na sua vida, mas que ali naquela noite iria ser-lhe apresentada uma alternativa, que ele podia ou não escolher.

Era um discurso demasiado vago e todos estavam impacientes sem saberem o que ia acontecer. Então a rapariga, que a mulher anunciou como sendo Marta, saiu do centro e começou a dirigir-se para um dos rapazes. Foi com enorme espanto que Rui viu que, quando tudo indicava que iria ser o escolhido, ela caminhava lentamente em direcção a Vasco. Não entendia nada, um acontecimento como aquele tinha de fazer algum sentido e ele devia ser o escolhido, não Vasco, sentia isso. Para além do mais Vasco ia casar, tudo o que não precisava era de mais uma mudança na sua vida.

Deu por si a rir, no final aquilo era tudo uma brincadeira e estava a reagir como se o futuro de alguém pudesse ser modificado por aquela escolha. Todos riam enquanto Marta pegava na mão de um Vasco desconfiado e pedia-lhe para passear um pouco com ela fora da tenda. Mas apesar de rir com os outros Rui não estava completamente convencido da brincadeira e olhou para os dois enquanto saíam de mãos dadas da tenda. Pensou uma última vez que ele é que devia estar ali.


Medo

Nunca ninguém soube o que aconteceu a Vasco fora da tenda, mas todos assistiram à forma descontrolada como o encontraram alguns minutos depois, parecia que estivera a beber e chorava desesperadamente. Ao principio alguns pensaram que se tratasse de uma brincadeira, mais uma numa noite cheia de tantas partidas, mas rapidamente chegaram à conclusão que o estado do seu amigo era genuíno. Rui aproximou-se dele e tentou que se controlasse, era o seu maior amigo e tentou afastá-lo um pouco dos outros para perceber o que se passava.

Vasco chorava de tal forma que Rui apenas conseguia perceber algumas palavras no meio dos soluços e só ao fim de uns segundos começou a perceber e a juntar algumas das palavras que o seu amigo ia dizendo. Vasco dizia que tinha sido amaldiçoado, que estava perdido, que estava apaixonado. Não era possível, que espécie de feitiço tinha sido lançado sobre o seu amigo que lhe fizera perder a razão? Olhava para o lado procurando a rapariga, procurando alguma resposta que pudesse dar algum sentido ao que se estava a passar mas apenas conseguia ver as cinco irmãs. Como era possível que agora a achasse tão diferentes das outras?

Saiu da tenda com Vasco e percebeu que aos poucos o amigo ia ficando mais calmo, mas sem deixar de ter algo diferente no olhar, como se tivesse sido marcado de uma maneira que nunca iria esquecer. Perguntava-lhe de forma repetida o que é que ela lhe tinha feito, mas não conseguia uma resposta, só um olhar para o vazio. Pensou outra vez que devia ter sido ele o escolhido.


A encruzilhada

Ao fim de meia hora Vasco falou, mas nem tudo fez sentido. Disse que a sua vida ia mudar. Que ia casar com a mulher que sempre amara e ter muitos filhos, mas que não se ia esquecer daquela noite nunca. Que até ao dia em que morresse iria se lembrar de que a vida não é sempre o que parece e que quando certas escolhas nos são apresentadas em certas alturas podemos seguir por caminhos completamente diferentes. Levantou-se e antes de ir ter com o amigos voltou-se para Rui e disse-lhe, com os olhos cheios de lágrimas, que deveria ter sido ele o escolhido.


Acordar

Rui acordou às seis da manhã e a sua cabeça estava cheia de pensamentos confusos. Tivera o sonho mais estranho da sua vida e não conseguia perceber sequer se tudo o que lhe vinha à mente tinha ou não acontecido. Feira, tenda, cores, gémeas...tudo palavras e imagens que o assombravam e deixavam desorientado. O que é que este sonho significava? E quem era esta rapariga que amava mais do que a própria vida?

Levantou-se e um medo enorme apoderou-se dele, medo de esquecer, medo de não se lembrar dai a uns segundos de tudo o que tinha na cabeça. Sabia que era assim com os sonhos, que quando acorda uma pessoa consegue descrever tudo o que sonhou, mas que passados poucos momentos tudo se começa a desvanecer e quanto mais se pensa no sonho menos nítido ele fica.

Agarrou rapidamente numa caneta e começou a escrever. Começou por descrever todos pormenores que se lembrava do sonho sem ter muita atenção à ordem, apenas palavras soltas, nomes, sensações, tudo que o ajudasse a não esquecer o que tinha sonhado. Mas com o passar dos minutos uma história começou a ganhar forma. Sem perceber que o estava a fazer, começou a escrever palavras que podiam ser unidas e frases que faziam sentido, começou a pôr por escrito tudo o que se tinha passado, mas com se o estivesse a fazer imaginando tudo pela primeira vez.


Sonho

Neste novo sonho tudo estava presentes, ele, os amigos, a feira, o circo. Mas as cores da noite eram ligeiramente diferente, havia alguma coisa que distinguia esta noite da outra que tinha vivido. Era como se estivesse a reescrever o passado, como se pudesse mudar a vida de todos com que tinha sonhado.

Entrou na tenda mais uma vez e deparou com o mesmo espectáculo que já vira uma vez. Seis cavalos a trotear, seis raparigas de cabelos ao vento, uma ameaça no ar e o medo e a esperança de desta vez ser ele o escolhido. Estava nervoso, olhava outra vez para Marta e sem nenhum tipo de espanto percebeu que continuava a conseguir distingui-la das outras. Na verdade não era difícil, havia uma traço muito particular que a tornava diferente. Mas Rui não precisava disso, conseguia saber que era ela mesmo de olhos fechados, conseguia saber que era ela que se aproximava e abria os olhos apenas quando ela passava por ele.

Desta vez não havia escolha nem escolhido, apenas ficavam a assistir ao espectáculo e a todo aquele movimento que lhes brilhava nos olhos. Apenas ficava a olhar para alguém que sabia ir amar para o resto da sua vida, a sua princesa prometida, que o ia acompanhar para sempre naquele e no mundo real. O espectáculo terminava com o aplauso entusiasmado de todo o grupo. Olhava para Vasco e sorria por o ver tão bem disposto, um Vasco diferente do outro que entendera o significado de escolher, que percebera como a vida pode ser diferente.

No fim todos se juntaram e ele e os seus amigos cumprimentaram as irmãs pela sua actuação. Procurava por ela sem saber bem o que lhe dizer, sem saber como se apresentar. Tinha quase a certeza que desta vez ela voltara olhar para ele, mas sentia-se nervoso com tudo aquilo, até que sentiu o toque de uma mão na sua. Olhou para o lado e encontrou o sorriso que procurava. Falou.

- Tu és a Marta, não és?

2 comentários:

xein disse...

Caramba, essa inspiração não tem fim!

Tem-se leitura para o fds quase :)

Sente-te e obrigada pela PUB ali ao lado!!! :)

M de M disse...

Há muitos, muitos anos, tive uma experiência "traumatizante" num circo daqueles pequenos que percorriam o país de lés-a-lés.
E tudo motivado por um ventríloco decadente, um foco potente apontado à minha cara, e as minhas irmãs mais novas aborrecidas por estarem a ser gozados pelo manuseador do dito boneco...
Nunca me irei esquecer! Agora que consigo achar piada à aventura, vou se ver se escrevo uma história.
Eheheheh

*