terça-feira, maio 04, 2004

Papagaios e cães

Vermelho e Verde

Enquanto avançava por entre as pessoas, demasiado embriagado, conseguia reconhecer os mesmos rostos de sempre. Sílvia, a fogosa loura que nunca parava de dançar até cair exausta num canto qualquer. Maria, que quase sem se mexer enfeitiçava todos os presentes. Carla, completamente desengonçada e sempre no engate. João, batendo violentamente em quem passava.

A mistura de álcool com as pastilhas era muito agradável pois parecia que estava dentro de um daqueles vídeos onde uma câmara de filmar segue desfocada por entre as pessoas e todos nos cumprimentam. Era o meu momento, o artista de cinema no meio dos admiradores.

Os tons de vermelho e verde faziam tremer os meus olhos e a batida exagerada parecia fazer com o que o meu coração batesse descontroladamente. Era o rei da noite, não sentia metade do corpo, mas era o rei e todos se curvavam diante de mim enquanto avançava para o meu trono. Daquela cadeira dourada decidia a sorte de todos, quem vivia, quem morria, quem ficava com quem.


Acordar

Tinha sempre o mesmo sonho depois das noites de discoteca antes de acordar e ir vomitar à casa de banho. Era uma rotina de fim-de-semana que me agradava e passava todas as semanas enfadonhas sonhando com aquele momento em que, sentado no chão da casa de banho, tentava decidir o que fazer com o resto do Domingo. Iria para praia, apesar de ser Inverno.

Como sempre só eu, os papagaios e os cães, eu gostava mais dos papagaios e da forma como dançavam no ar. O cães só chateavam e nunca conseguia meter conversa com as donas. Naquele dia um cão cinzento aproximou-se de mim com um papagaio na boca, uma variação interessante. Atrás dele vinha uma rapariga de calções cremes e botas castanhas, cabelo louro apanhado e um ar um pouco atrapalhado, devia pensar que o papagaio era meu. Disse-lhe que não e ela disse que o cão também não era dela, estava só a tomar conta dele naquela tarde. Era um bom começo, com o cão eu nem tentaria meter conversa.

Chamava-se Inês, eu gostava de Inês, era um nome diferente, com um acento circunflexo, e que soava bem ao ser pronunciado. Eu também gostava desta Inês, de olhos castanhos e pele branca. Mas ainda estava zonzo da noite passada e tinha medo de dizer algum disparate, não podia me descair com o meu medo de cães, pelo menos enquanto o amigo dela andasse a rebolar por ali.


Outra vez as cores

Ela disse que me conhecia, eu fiquei um pouco atrapalhado, pois ainda ontem tinha chegado a casa em tronco nu. Não pude deixar de comentar, um defeito meu, ela riu perdidamente, melhor, ela rebolou na areia. Cheguei a sentir alguma raiva, mas ela era muito bonita e aquele sorriso...Ela conhecia-me do metro, parecia que apanhávamos a mesma linha e normalmente à mesma hora, o que era estranho pois eu ia sempre a olhar para todas as pessoas, onde é que ela se escondia? Bem, pelo menos não me conhecia de outro sitio e com menos roupa. Embora não tivesse a certeza que isso fosse bom, eu estava mesmo muito confuso naquela tarde.

Descobri naquele momento que tínhamos sido feitos um para o outro e se o cão continuasse longe podia vir a ser uma tarde perfeita. Conversámos muito e descobrimos que não tínhamos praticamente nada em comum, prometedor sem dúvida. Tinha a certeza agora que era a mulher da minha vida. Perguntei-lhe se podíamos assistir ao pôr-do-sol juntos e ela disse que tendo em conta que não conseguia imaginar nada mais piroso, iria aceitar. Por esta altura já estava completamente apaixonado e acho que ela também.

Demos as mãos e vimos o pôr-do-sol mais feio que alguma vez vi, o sol era de um amarelo esbatido e enfiou-se depressa na neblina, acho que na realidade foi só um meio pôr-do-sol. Mas eu beijei-a na mesma e foi o beijo mais doce de toda a minha vida, pelo menos até o cão ter caído em cima de nós cheio de areia e algas.


Eu e a Inês

Hoje estamos juntos e somos muito felizes, temos um cão, mas é pequenino e é ela que trata dele, até porque eu desconfio que ele não gosta de mim. Eu comprei um papagaio e todos os domingos imagino que voo com ele. Já não vou tanto à discoteca, até porque eles têm outro soberano. Mas fico em casa a olhar o céu, que na cidade não dá para ver grande coisa, mas eu sei as constelações de cor e aponto para o lugar delas enquanto estamos deitados na varanda e às vezes até deixo que o cão fique connosco.

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