quinta-feira, maio 20, 2004

Cores

Desde pequeno que sempre me fez impressão passar entre duas pessoas que caminham juntas. É como se quebrasse uma ligação invisível entre elas ou então que ficasse de alguma maneira ligado às duas por um nó que poderia ou não ser desatado um dia. Até lá ficaríamos ligados de alguma maneira.

Sempre achei que isto era um sonho meu, apesar de toda a vida ter visto a minha avó a fazer o mesmo e de uma maneira curiosa. Por vezes movimentava-se entre a família numa cozinha cheia de gente sem a mínima preocupação, outras vezes, num corredor ou noutro sitio da casa pedia para passar por um lado ou chegava a pedir às pessoas para desfazerem pequenos percursos que tinham acabado de fazer. O estranho é que eu ao observar tudo isto conseguia ver uma lógica naquele comportamento, como se pudesse ver os fios invisíveis e a forma como eles se enrolavam e soltavam uns dos outros e como isso podia afectar a vida de cada pessoa.

Enquanto fui crescendo esta percepção foi diminuindo, mas sempre consegui sentir quando estava a passar por onde não devia, embora não tivesse a coragem da minha avó. Não conseguia pedir às pessoas para voltar para trás ou que me deixassem passar pela esquerda ou pela direita mas, se pudesse, seguia o caminho que me parecia mais lógico e de uma maneira discreta ia-me desviando no meio da multidão.

Até que um dia percebi que isto não era um sonho meu. Tudo começou quando fui trabalhar para um local novo e certo dia reparei numa rapariga que almoçava perto de mim. Era alguém que eu conhecia, pois tinha entrado numa série de adolescentes na televisão muitos anos antes, mas mais do que isso era uma pessoa que eu já tinha visto em muitas situações. Acho que em todas estas situações tinha pensado nisto vagamente, mas só naquele momento, a almoçarmos perto um do outro, é que percebi que tinha passado toda a minha vida a encontrá-la.

Esta situação era mais estranha ainda, pois eu só vim viver para Lisboa com 18 anos e os encontros já vinham de há mais tempo. Eu lembrava-me dela da praia, de concertos, de passeios na rua, do cinema, de todo o lado. Eram encontros algo espaçados no tempo, o que devia ter feito com que eu não pensasse assim tanto no assunto, mas naquele momento um certo nervosismo apoderou-se de mim. O que era aquilo? Como é que duas pessoas passavam vida a encontrar-se?

Claro que a minha primeira teoria foi a das almas gémeas, mas na verdade eu não simpatizava muito com ela nem a achava especialmente atraente. Na verdade eu não tinha sequer muito vontade de a conhecer, eu tinha era vontade de esclarecer este mistério.

Comecei então a perguntar a todos os meus amigos se já lhes tinha sucedido algo do género, mas para além de ter diminuído bastante na consideração de algumas pessoas que conhecia, não obtive nenhuma resposta positiva. Por esta altura a angústia começava a crescer, pois ela devia trabalhar perto de mim e eu agora via-a com bastante regularidade.

Então um dia sucedeu algo muito estranho, quando estava de férias na praia reparei num homem que eu sabia conhecer de algum lado, depois de pensar um pouco lembrei-me de onde era, eu conhecia-o de umas férias no Brasil. Mas isto não ficava por aqui, de repente percebi que ele também era o senhor que se sentava à nossa frente na praia, no ano anterior e que também tinha estado no nosso grupo naquela visita a umas grutas na Madeira uns anos antes. Fiquei desorientado, era uma situação muito parecida com a da rapariga mas que só acontecia quando eu estava de férias. O que era isto? Que coincidências eram estas? Claramente existiam pessoas que estavam ligadas umas às outras de alguma maneira que fazia com que se fossem encontrando, como que se estivessem presos por alguma linha invisível, que mais tarde ou mais cedo os trazia para junto uns dos outros. Interessante também, era o facto de parecer não ser relevante o facto das pessoas se conhecerem ou não. Eu não conhecia nenhuma destas duas pessoas e sinceramente não tinha nenhuma vontade de as conhecer, embora achasse piada ao homem pois usava um chapéu muito engraçado e nas férias do Brasil ia acompanhado de uma senhora que eu não tinha visto junto com a família nas outras ocasiões. Não aguentei mais, fui ter com a minha avó, que morava fora de Lisboa.

Lembro-me perfeitamente da cara dela quando lhe contei isto tudo e do sorriso que fez. Disse-me que sabia que nós todos reparávamos nas “manias” dela, mas que nunca tinha pensado que pensássemos muito nelas. Olhou para mim durante muito tempo, enquanto mexia no meu cabelo, como se tentasse decidir se devia contar-me alguma coisa ou não. Decidiu contar. Contou-me que quando era nova e vivia na aldeia onde nascera um dia largara a mão da mãe e correra por entre um grupo de pessoas que seguia numa procissão e que enquanto passava entre as pessoas lhe parecera ver umas linhas coloridas que ligavam todas as pessoas que iam naquele grupo, mas que também saíam dali e iam ter com as pessoas que assistiam à passagem. No entanto reparava que entre as pessoas da procissão as cores eram mais fortes.

Com a idade de seis anos deixara a aldeia e poucas vezes lá tinha voltado, mas continuou a encontrar as pessoas da procissão o resto da vida, como se tivesse ficado atada a elas de alguma maneira. Contou-me também que o nesse grupo estava um menino de cinco anos que viria mais tarde a ser seu marido, o meu avô. Disse-me que não sabia explicar tudo o que me contara e que era verdade que nem sempre as pessoas que toda a vida tinha visto tinham tido alguma importância na sua vida. Deu-me um beijo na testa e disse que podia não ligar àquelas tontarias de uma velhota ou que então podia prestar mais atenção à minha volta, a escolha era minha e não me disse mais nada.

Voltei para Lisboa muito pensativo sem saber que conclusões retirar do que a minha avó me dissera e guiei descontraidamente, ouvindo música e sonhando acordado. Quando estava quase a chegar a casa ao fim da tarde vi um arco-íris muito bonito e bem definido que fazia um arco perfeito por cima de mim. Fiquei muito tempo a olhar para ele e estranhei ele demorar tanto tempo a desaparecer. Então tive um impulso e saí da estrada principal em direcção ao lado do arco-íris que me parecia estar mais perto de mim.

Guiei alguns minutos em direcção à base do arco-íris e fui dar a uma terra muito simpática onde parecia estar a haver uma festa. Parei o carro e olhei o céu, as cores no céu já quase não se viam, mas ainda conseguia seguir o arco que parecia terminar no centro da praça onde a festa decorria. Podia ver pessoas a dançar enquanto outras conversavam alegremente. Um cheiro a comida acabada de fazer juntava-se aos cheiros do fim da tarde e as cores esbatidas do arco-íris juntavam-se às cores avermelhadas do horizonte. Por momentos pareceu-me ver uma linha colorida a passar por mim e pensei se seria imaginação minha, aquela hora do dia era estranha e eu tinha tido um dia cheio. Pensei então no que minha avó me tinha dito, pensei no meu avô, que morrera anos antes, mas que deixara uma saudade muito grande no meu coração e depois de um pequeno sorriso e de um último olhar para o céu, comecei a andar devagar e entrei na praça...

1 comentário:

Patricia Lopes disse...

por vezes vimo-las, por vezes sentimo-las! Mas a verdade é que elas lá estão.... as linhas que nos unem aos outros!
Somos todos um...