quarta-feira, maio 26, 2004

O rapaz que ouvia música

Dom

No dia 28 de Setembro de 1972 nasceu em Lisboa um rapaz que parecia igual a todos os outros nascidos nesse dia, mas na verdade não era, esse rapaz tinha nascido com um dom que só se revelaria anos mais tarde.

E o rapaz foi crescendo como todos os outros da sua idade, fazendo as mesmas coisas, tendo os mesmos problemas e as mesmas alegrias. Era muito afável e aquele tipo de pessoa de que não é muito difícil gostar se a conhecermos bem, era como se costuma dizer “um bom miúdo”.

Mas a meio da adolescência qualquer coisa se complicou na sua cabeça, de repente uma vida perfeitamente estável transformou-se numa vida ansiosa e algo angustiada. Ele não sabia o que é que estava na base daquela mudança, mas sentia-se cada vez mais apático, mais sozinho e mais infeliz.

Então começaram os problemas, na escola, em casa, com os amigos, parecia que em todo o lado o seu mundo estava a ruir e por muito que pensasse não conseguia arranjar uma resposta para justificar o que estava a acontecer. Ele achava que não tinha mudado nada, mas o mundo à volta dele estava realmente diferente.


Começo

Quando chegou à idade adulta tudo se complicou, a sua vida corria de forma muito irregular, apoiada em comprimidos e eternas sessões em psicólogos que não o conseguiam ajudar. Continuava a viver com os pais e trabalhava num emprego do qual não gostava muito, mas onde não era totalmente infeliz e até demonstrava algumas capacidades.

Mas era no campo amoroso que as coisas não corriam muito bem, não conseguia manter uma relação estável, para falar verdade não tinha tido assim tantas relações porque era-lhe muito difícil estabelecer contacto com as raparigas que lhe interessavam e isso não ajudava a que tudo o resto corresse bem.

Então um dia tudo mudou. Estava a passear na baixa e decidiu ir a um centro comercial ver se encontrava um disco que procurava há muito tempo. Entrou no elevador e quando a porta estava quase a fechar reparou que uma rapariga vinha a correr para tentar entrar também, segurou o elevador e sorriu para a rapariga quando ela agradeceu ele ter segurado a porta.

A rapariga era bonita, na verdade era mesmo muito bonita e não foi muito fácil não ficar especado a olhar para ela, isto até perceber o que estava a fazer e ter ficado muito corado, o que provocou um ligeiro sorriso nela. Então de repente começou a tocar uma música que ele gostava muito e que nos últimos tempos ouvia até à exaustão. Sentiu que tinha de dizer alguma coisa sobre a música e num impulso, nada próprio da sua maneira de ser, disse que gostava muito daquela música. A rapariga fez uma ar muito espantado que ele não percebeu, pois ela ficou mesmo a olhar para ele de uma maneira estranha. Ele perguntou se tinha dito alguma coisa de mal ou se ela não gostava da música por algum motivo especial e ela ainda ficou com um ar mais espantado, até que lhe disse que não estava a ouvir música nenhuma.

Ficou totalmente aparvalhado, ela só podia estar a gozar com ele, mas rapidamente percebeu pelos seus olhos que não. Deitou a mão à cabeça e pensou assustado no que é que se estava a passar, as portas do elevador abriram-se e saiu a correr, sentia que estava a enlouquecer.

Sentou-se num pequeno café de mesas pretas e ficou a pensar no que tinha acontecido. A música já tinha parado, mas ele tinha a certeza que a tinha ouvido, mas pelos vistos só tinha acontecido na sua cabeça. Sentiu que alguém se aproximava e levantou os olhos da mesa, era a rapariga do elevador que perguntou se podia sentar-se, ele respondeu afirmativamente, embora ainda não se sentisse muito bem.

Ela foi directa ao assunto e perguntou-lhe se ele realmente tinha ouvido uma música a tocar no elevador, ele hesitou na resposta mas acabou por acenar com a cabeça dizendo que sim. Ela disse que isso era muito estranho e perguntou se já tinha acontecido mais vezes. Ele disse que fora a primeira vez e que se calhar tinha sido da companhia, conseguindo apesar de tudo brincar um pouco com a situação. Ela perguntou se a música já tinha parado e ele disse que sim e ela desafiou-o para tentar outra vez ouvir a música. Mas ele disse que não sabia como fazer isso, ao que ela respondeu sugerindo que ele cantarolasse mentalmente uma música qualquer.

Decidiu experimentar e lembrou-se de uma música que tinha ouvido na rádio de manhã, pensou um pouco nela e começou a ouvi-la. O primeiro reflexo que teve foi o de olhar para todos os lados, mas depressa percebeu que não havia nenhum aparelho a tocar e perguntou à sua companhia se também estava a ouvir, ela respondeu negativamente com um olhar triste e disse-lhe que talvez se lhe tocasse também conseguisse ouvir. Esticou uma mão timidamente em direcção a uma das dele, mas pela cara dela ele percebeu logo que ela não estava a ouvir nada.

Achou que aquilo não fazia sentido, que estava maluco, que estava a perder o controlo, mas verdade é que continuava a ouvir a música. E o facto de ter ouvido a primeira música ao pé dela não podia ser coincidência. Sugeriu que talvez tivessem de dar as mãos com mais força, ela disse que sim com a cabeça e apertaram com força as mãos um do outro. Não precisou de uma resposta dela para saber o que tinha sucedido e com os olhos a brilhar ela disse-lhe a sorrir que também tinha aquele CD.


Super-Herói

Tudo isto era uma grande novidade na sua vida. Desde pequeno que se habituara a “devorar” livros de super-heróis com poderes especiais e sempre desejara ser um. Muitas vezes mesmo tinha imaginado um novo tipo de herói com novos poderes com os quais combatia o mal. Pensava nisto enquanto caminhava para casa tentando entender o que se tinha passado e enquanto ia ouvindo música sem parar. Por esta altura já descobrira que conseguia reproduzir mentalmente qualquer música que tivesse ouvido, o que fazia com que de repente a sua vida tivesse “banda sonora”. Poderia considerar isto um “poder”? E se sim, o que fazer com ele? Não podia agarrar-se aos bandidos e “pô-los a ouvir música”. Na verdade nem sabia bem se isto era algum tipo de dom, ou se por outro lado era apenas a sua cabeça que estava cada vez pior. Na realidade, tendo em conta o seu passado, tinha de pôr a hipótese de estar doente e de este ser um sintoma dessa doença, mas era sem dúvida uma doença boa e ainda havia o facto da rapariga ter conseguido ouvir a música também.

A rapariga era outro problema, claramente tinha ficado completamente apaixonado por ela e sentia que ela também sentia alguma coisa por ele, mas também não é todos os dias que se conhece alguém que tem um “leitor de cd’s” na cabeça. Lembrou-se do Super-Homem e do estranho triangulo amoroso entre ele, Lois Lane e a sua outra identidade, o atrapalhado Clark Kent. Achava que o próprio Batman também passara por questões deste género em que não sabia se, ao contar quem era, o amor não seria mais pelo herói do que pelo, apesar de tudo muito charmoso, Bruce Wayne. De qualquer maneira esta sua nova capacidade era muito agradável e a alguma conclusão haveria de chegar.


O Filho da Música

Esteve uma semana fechado no seu quarto a ouvir música e a pensar em tudo o que tinha acontecido. Só era interrompido pela sua mãe preocupada com o que se estava a passar e pelas mensagens que trazia da rapariga daquele estranho dia. Tinha saudades dela, mas não sabia como lidar com ela.

Então um dia de repente acordou com uma música na cabeça da qual não se lembrava, parecia alguma coisa muito distante, qualquer coisa que talvez tivesse ouvido em miúdo. Saltou da cama e abriu a caixa dos velhos discos que já ninguém ouvia e passou as mãos suavemente por eles enquanto procurava algo, mas que não sabia o que era. Até que no meio de dois discos descobriu um pequeno livro que tinha o titulo de “O Filho da Música”, não se lembrava de ter alguma vez visto ou lido aquele livro e folheou com cuidado as folhas já amareladas do tempo.

Era uma pequena fábula que contava a história de um rapaz órfão que vivia numa aldeia muito pequena e que todos diziam ser filho da música, devido ao facto de no dia em que fora encontrado abandonado à porta da igreja os pássaros terem cantado como nunca se tinha ouvido naquelas paragens. O livro contava as peripécias da sua juventude e como ele tinha crescido sempre com uma maneira de ser distante mas estranhamente alegre para quem tinha tão pouco. No fim do livro o rapaz, já homem, deixava a aldeia de uma maneira tão súbita como a em que chegara àquele local, no meio da maior tempestade que todos juravam ter assistido, em que o vento soprara como nunca, tocando belas mas assustadoras melodias pelo meio das árvores. Desde esse dia ele nunca mais tinha sido visto e a história seria contada às crianças durante muito anos.


Descoberta

Que estranha história aquela. Saiu a correr do quarto e com o livro na mão foi ter com a sua mãe e perguntou se ela sabia quem tinha o tinha comprado, também queria saber se ela se lembrava de quando é que ele começara a ter problemas, de alguma forma achava que o livro estava ligado ao seu comportamento. A mãe olhou espantada para o livro e sorriu, enquanto uma lágrima lhe escorria pela face. Ele estranhou este comportamento e ficou a olhar para ela à espera de uma resposta. Então ela contou-lhe que o livro tinha sido uma prenda do seu pai, o avô dele, para ela quando era pequena e que se lembrava que o avô tinha pedido para passar o livro para os seus futuros netos, que não viria conhecer. Claro que ela não o tinha feito, era muito pequena quando tinha recebido estas instruções e nem sabia bem como era possível estar agora a recordar aquela história.

Perguntou como é que era o seu avô e a mãe respondeu-lhe que era um sonhador como ele e que desaparecera cedo demais das suas vidas. Ele beijou-a na testa e disse-lhe para não se preocupar mais com os problemas dele, o avô tinha-lhe dado um conselho que iria ajudar a resolver tudo. A mãe ficou a vê-lo a sair de casa entusiasmado e perguntou-lhe onde ia. Disse que ia pensar um pouco à beira mar e ouvir um pouco de música. Ela estranhou ele não levar o leitor de cd’s portátil, mas ainda assim sorriu enquanto o via pela janela a afastar-se com um andar descontraído e alegre.


De mãos dadas

Quando chegou à praia olhou para todos os lados à procura da sua amiga da semana anterior, não sabia porquê mas sabia que a ia encontrar ali. E estava certo, quase junto à água viu-a pensativa. Sentou-se ao lado dela e beijou-a na face enquanto pedia desculpa por não ter respondido às mensagens dela. Perguntou-lhe se já se tinham encontrado naquele sitio, ela disse que já o vira muitas vezes ali, embora ele parecesse sempre muito distante. Ele disse que não se lembrava dela ali na praia, mas que de certeza que já tinha reparado nela, senão não teria ido ali à procura.

Ela perguntou se ele já chegara alguma conclusão sobre o que lhe tinha acontecido e ele disse que não sabia se havia uma explicação, sabia apenas que podia fazer uma coisa que não sabia se havia mais alguém que pudesse, mas que era uma coisa boa e pelo menos iria tentar utilizá-la para ser feliz. Ela disse que se calhar era algo que desse para aprender e riu-se dela mesmo. Ele riu também e disse que podia ao menos partilhá-la.

Estava um final de dia muito bonito e ele deu-lhe a mão enquanto olhavam o mar e perguntou se ela tinha alguma música que lhe apetecesse ouvir, ela disse que não tinha nenhuma e que na verdade naquele momento preferia ficar a ouvir o barulho do mar. Ele sorriu com a resposta dela e perguntou se lhe podia dar um beijo, não teve quase tempo para acabar a pergunta...

1 comentário:

xein disse...

E há momentos assim...

1972 é um ano de boa gente!!!