sábado, abril 24, 2004

Vocês Sabem Lá

Ócio

Nunca me tinha sentido satisfeito com a vida e pensava quando é que conseguiria alcançar aquele “não sei o quê” para me sentir realizado. Nem sabia o que me esperava...

Tinha 30 anos e uma vida boa comparativamente com muitas das pessoas que conhecia, mas mesmo assim não chegava e eu estava sempre à espera de poder mudar, de descobrir qualquer coisa nova.

Nunca tinha gostado do que fazia, mas com os anos tinha-me habituado à ideia de que nem todos podiam ter trabalhos de que gostavam. Arrastava-me assim todos os dias para aquele escritório e trabalhava com a cabeça sempre noutro lado. Nem era um mau profissional, para quem não estava presente, mas o pior era a besta com quem tinha de trabalhar, um chefe que para além de deixar muito a desejar em hábitos de higiene, era o tipo de pessoa que nos rebaixava em todos os momentos.

A vida começava então quando saía do trabalho e podia fazer as coisas que gostava. Tinha uma casa pequena no meio da cidade que era muito frequentada por vários amigos. Éramos um grupo grande mas que se estava a desfazer com a avalanche de casamentos dos últimos anos. Depois vieram os empregos, os filhos, os sogros e cada vez eram menos as pessoas que frequentavam a minha casa e que mantinham contacto.

Eu próprio estivera quase para entrar naquele grupo, mas a certa altura tinha sentido que o meu namoro só servia para eu me acomodar e não seguir com a minha vida pelo caminho mais certo. O que acontecera, na verdade, é que tinha ficado sozinho e não tinha ido a “lado nenhum”.

Continuava mesmo assim todos os dias a prometer a mim mesmo que iria mudar, que iria ter um emprego mais realizador, que iria descobrir a mulher dos meus sonhos, enfim, que seria feliz. Mas os dias passavam e eu apenas me sentia mais sozinho e infeliz.

Era aquela sensação da música “...só quero estar onde não estou...”, uma indefinição que me deixava mais desorientado a cada dia que passava e fazia com que me refugiasse nos meus sonhos de forma mais intensa. Só que até os sonhos já não chegavam para compensar o que a realidade não trazia à minha vida e eu sentia-me a explodir.


Mudança

Foi com esta disposição que fui trabalhar naquele dia de Novembro e na verdade acho que foi por isso que tudo aconteceu. Nem sei bem quem começou, mas lembro-me perfeitamente como acabou, com vários dentes do meu chefe espalhados pelo chão e com mais um desempregado na cidade.

De certa forma tinha conseguido trazer alguma coisa de diferente para a minha vida mas não era bem o que estava à espera. Não ia ser fácil arranjar novo emprego depois do que tinha acontecido, já para não falar na situação de ter sido despedido com justa causa, não podendo recorrer ao subsidio de desemprego, tornei-me numa vitima para mim mesmo e fui-me abaixo.

Já há muitos anos que cortara todas as relações com a minha família e ter de lhes pedir ajuda não era uma hipótese para mim. Mas sabia que o dinheiro chegaria no máximo para dois meses e depois algo de grave iria acontecer. Foram dois meses muito rápidos em que fiz aquilo em que sempre fui muito bom, ou seja, nada. E até ao último dia não acreditei que iria se passar o que na realidade tinha que acontecer. Claro que fiquei sem casa.

Durante mais dois meses recorri à ajuda de alguns amigos que me deixaram ficar em casa deles, mas a vida é engraçada, pois as pessoas com quem eu podia mais contar ou estavam fora do país, ou tinham 3 filhos para criar, ou tinham ido estudar dois anos para os Estados Unidos. Onde é que estavam as pessoas? O que tinha acontecido ao mundo que me rodeava? Apesar desta inconstância eu era boa pessoa, eu sabia que sim, porque é que então me estava a acontecer isto?

E mais uma vez tive azar, o casal de amigos que me abrigava nas últimas semanas teve de largar a casa onde vivia em menos de uma semana e eu de repente estava sem ter onde ficar e com pouco dinheiro no bolso. Podia vender as coisas que tinha e que desde que tinha perdido a casa estavam guardadas num barracão de outro amigo, mas não eram muito valiosas. Quando perdi o emprego tive de vender as coisas mais valiosas por causa da indemnização que tive de pagar ao meu antigo chefe.

Quando entrei no quarto daquela pensão de quinta categoria não pude deixar de sorrir, não era bem o que tinha planeado como mudança, mas para já iria ter de servir.


Queda

Não foi uma estadia longa a da pensão, nem muito feliz. O pânico instalou-se e eu sentia que não ia poder adiar por muito mais tempo o que não podia ser adiado. Estava na rua, era uma questão de dias..

Uma pessoa nunca imagina o que é viver na rua. Quando andamos nos nossos carros aquecidos com a as nossas roupas de marca e olhamos para os sem-abrigo pensamos só no frio e na fome que devem ter. Mas viver na rua é mais do que isso, viver na rua é frio, é fome, mas também é insegurança, é falta de higiene, é sentirmo-nos uns animais à procura de um pouco de lixo para comer.

Claro que não se desce tão baixo logo de inicio, primeiro tentamos por tudo não nos deixar levar por aquele mundo, vamos a todas as instituições de apoio, a todas a sopas dos pobres, forçamo-nos a acreditar que vamos conseguir sair daquela vida depressa. Mas verdade é que vamos tendo menos esperança, vamos tendo mais fome, vamos cheirando cada vez pior e quando damos por nós já nos transformámos naqueles mendigos que durante anos observámos e pensámos como teriam ficado assim.

Mas não deixamos de ser quem somos, ou pelo menos eu não deixei. Os sonhos aí ajudam, mas só para manter o “eu”, só para não nos esquecermos quem somos. E voamos, voamos como nunca, apesar do nosso corpo estar mais pesado, apesar de fisicamente estarmos cada vez mais afastados do que fomos, o espírito pode ainda ter alguma chama.


Raiva

Passaram dois anos e transformei-me por completo. Não restava muito do ser humano alegre que tinha sido e arrastava-me pelas ruas da cidade sem nenhum sentido de hora, dia, ano, nada...foi então que aconteceu.

Um dia andava à procura de um sitio para dormir. Era uma noite fria, de um mês qualquer, de um ano qualquer e eu procurava só algum sitio onde não tivesse tanto frio, onde pudesse dormir, onde pudesse descansar. Nessa altura a noção de mim próprio era muito vaga e só consigo relembrar este dia pelo que aconteceu, pelo que fui capaz de fazer.

Encontrei um canto dentro de um prédio abandonado e encostei-me a uma parede. Fechei os olhos como se não os fosse abrir outra vez e dormitei. Mas passaram apenas alguns segundos e fui acordado por uma voz que me chamava, era outro como eu, outro desgraçado da vida. Uma mão estava estendida para mim com um pedaço de pão, uma oferta generosa, mas uma oferta errada.

Levantei-me de um salto e fixei longamente aquele homem que me oferecia comida. Olhei as suas longas barbas, a sua roupa rasgada, a sujidade que o cobria todo e pensei que estava a ver um reflexo de mim mesmo. A lua brilhou, iluminando uma parte do quarto onde estávamos e mostrou algo que não fazia sentido no meio daquela imundice, diante de mim estavam dois enormes olhos azuis de uma beleza invulgar. Os olhos nunca ficam sujos, os olhos brilham mesmo no meio da tristeza e aqueles brilhavam de uma forma assustadora. Não me contive...e ataquei-o.

Parti para cima dele com toda a força que me restava no corpo e bati-lhe, bati-lhe o mais que pude, bati-lhe com as mãos, com os pés, usei pedaços de madeira que estavam por ali perdidos e que espetei na sua carne, mandei-o contra as paredes e quis matá-lo, quis que sofresse, quis que ele sentisse a raiva que eu sentia por aquela vida. A violência que usei foi tão grande que o meu sangue juntava-se ao dele no chão de pó e terra suja, criando uma lama vermelha com um cheiro intenso que até hoje posso sentir.

Só parei quando ele perdeu os sentidos e corri...


Correr

E corri, corri como nunca tinha corrido até aquele dia...corri para longe do mendigo, para longe da sujidade, da fome, do sangue que ainda tinha nas minhas mãos. Percorri uma distância muito grande, sempre sem saber onde estava, com a chuva a cair sobre mim. Mas não havia chuva que lavasse o meu “eu”, não havia água que me limpasse, eu estava a chegar ao fim.

Mas continuei, continuei até que já não sentia nenhuma parte do corpo, continuei descalço e quase sem roupa por entre os automóveis, por entre as pessoas que fugiam assustadas. E eu não via nada, não via ninguém, eu só tinha vontade de fugir, só tinha vontade de chorar.

Lembrei-me então da minha família, dos carinhos que a minha mãe me tinha dado quando era ainda bebé, das brincadeiras com os meus irmãos, dos dias de Natal, da praia no verão, dos meus avós com os seus sorrisos doces, lembrei-me dos meus amigos, das minhas namoradas, até me lembrei do chefe desdentado. Foi como se toda a minha vida me tivesse a passado à frente dos olhos como num filme que alguém se esquecera de focar, uma cópia estragada de um filme distante, de algo que eu já não sabia se teria ou não acontecido.

Achei que ia morrer, eu queria morrer! Queria que tudo acabasse, queria poder fechar os olhos e sentir uma cama quente ao meu redor, dormir, dormir para sempre e sonhar com coisas boas...achei que era o fim.


Redenção

Acordei. Não tinha morrido e estava numa cama com cheiro a perfume, uma cheiro que eu já não sentia há anos. Não fazia a mínima ideia onde estava, mas deixei que este sonho se prolongasse por algum tempo, tentei saborear o cheiro a comida que vinha da porta entreaberta, gozei o sol que batia na minha cara quando o cortinado branco baloiçava suavemente. Não queria acordar daquele sonho e deixei-me estar sem me mexer, olhando para o vazio naquele pequeno quarto.

Depois ela entrou. Eu demorei para reconhecer a pessoa que estava junto a mim, cuidando das minha feridas e obrigando-me a comer, era uma amiga do passado. Alguém que eu conhecera pouco, mas que por milagre achara que não podia deixar um mendigo no meio do chão. Ela só me reconheceu no hospital para onde me levou e onde era médica, os meus olhos também estavam na mesma e apesar do brilho ser mais fraco, ela sabia que já os tinha visto.

O nome dela era Maria, como o de todas as mães e ajudou-me a renascer, ajudou-me com muita calma a voltar a mim, a sair do pesadelo onde me tinha enfiado e do qual julguei que nunca iria sair. Nunca houve nada entre nós, foi só uma amiga que apareceu à minha frente, uma amiga que me deu a força para eu começar, que teve a paciência para a minha adaptação a um mundo diferente. Pois tal como eu o mundo tinha mudado e eu não sabia. Eu não sabia nada para falar verdade, eu só sabia que pela primeira vez em anos tinha sorrido e chorado durante horas logo a seguir...


Esperança

Os meses passaram e a vida voltou, não era a minha vida antiga, mas era uma boa aproximação. Depois de tudo o que passei sentia uma calma interior, que era como que o acabar de todo aquele desejo do “não sei o quê”, parecia que crescera como pessoa.

Os meus amigos voltaram para mim, ou melhor, eu voltei para eles e até fui visitar os meus pais, a quem não tive coragem de contar o que tinha acontecido. Até porque cada vez mais parecia que não tinha acontecido nada, que eu tinha adormecido e tido o mais negro dos pesadelos.

E foi com uma alegria suave sempre presente que passeava com alguns amigos numa tarde de Outono quando deparei com o mais bonito pôr-do-sol que alguma vez vi em toda a minha vida. Todos os prédios reflectiam aquela luz e pareciam todos pintados de amarelo torrado, como se eu próprio os tivesse pintado com os meus marcadores de quando era miúdo. Encostei-me e respirei fundo, sentindo todo aquele prazer de estar vivo, com amigos ao meu lado e podendo só fechar os olhos e sonhar.

Foi então que vi alguém no chão ao meu lado, era um mendigo. Na verdade era uma amostra do que uma pessoa pode ser tal era o mau aspecto que apresentava. Alguém que estava comigo apressou-se a dizer para sairmos dali e comecei a andar quando olhei para trás e vi numa das suas mãos retorcidas um pedaço de pão que esticava na minha direcção. Na sua face disforme, nem um sinal de emoção, nem um sinal de tristeza, maldade ou qualquer outro sentimento, era uma cara vazia. Mas os seus olhos azuis abriram-se e misturaram-se com as cores do final de tarde, era um azul mais fraco mas que teimava em brilhar. Olhei para eles durante uns segundos que me pareceram uma eternidade e afastei-me apressadamente para apanhar os meus amigos, ainda olhei mais uma vez para trás e a mão continuava estendida para mim. Afastei-me para sempre.

Apesar de tudo sou feliz, choro, mas sou feliz e continuo a passear ao final do dia com amigos ou sozinho e sei que um dia posso encontrar outra vez o meu destino, ou então posso só ter uma vida normal como todos os outros...

3 comentários:

laura disse...

Pois faz. E faz-me lembrar que também foi por aqui que comecei a descobrir-te. Como se diz nos filmes, foi o começo de uma grande amizade. Gosto de ti, pázinho. Bués! E gosto de conhecer o teu mundo. Obrigada por me teres deixado entrar nele.

Anabela disse...

Muito envolvente, o seu conto. Você é bom nisto. Também não devo ser a única pessoa a achá-lo.

Não sei se são textos autobiográficos, pois reparei, na leitura breve que acabei de fazer no seu blog, que escreve na 1ª pessoa...

Parabéns. Ao menos você, não comete auto-plágios... lol

rmena disse...

Li agora as tuas primeiras linhas aqui publicadas... Fiquei sem palavras meu amigo.

A realidade mistura-se com a ficção e ficamos sem saber o que é que é o quê. O sofrimento é certo e fez-me lembrar algumas coisas da minha própria existência.

Estou contigo. Abraço