sábado, abril 24, 2004

Caminhando

Vinte e três

Estava casado há cinco anos e nunca tinha traído a minha mulher. Era este o meu pensamento enquanto olhava para o gelo no fundo do copo naquele bar no meio do Porto. Estava já ali há duas semanas em trabalho e tinha ganho algum afecto por aquele canto mesmo no meio da cidade, que ficava muito perto do meu hotel.

Era uma espécie de mistura entre os bares que frequentara na província, antes de ir estudar para Lisboa, e os bares cheios de universitários que conhecia na grande cidade e que, felizmente, não frequentava há muito.

O tipo de clientela era muito heterogéneo, mas a média de idade não era muito alta, ia desde os vinte e poucos até aos trinta e muitos, eu estava no meio. Esta posição era-me favorável pois podia sonhar com todos, ou melhor com todas.

Era nisso que eu pensava naquela noite de calor, nada própria daquela altura do ano. Nas pessoas que estavam ao meu lado e na minha vida, principalmente no meu casamento. Não é que não fosse feliz mas ao fim de uns anos as dúvidas, que sempre existiram, tornaram-se mais fortes e eu comecei a questionar tudo e a olhar para o lado de outra maneira.

Tinha crescido observando as relações dos outros e quando chegara à idade adulta tinha mais que informação suficiente para saber que a fidelidade era um mito. Mesmo assim tinha-me recusado a acreditar que tal fosse uma fatalidade e tinha casado acreditando que podia fugir ao que era o mais óbvio. Com o passar dos anos fui vendo as coisas que iam acontecendo nos casamentos dos meus amigos e a descrença começava a apoderar-se de mim.

Levantei os olhos do copo e reparei que ao meu lado estava uma rapariga sozinha a escrever numa folha descontraidamente. Era mais ou menos da minha idade, ou pelo menos assim parecia e era muito bonita, com uma cabelo preto curto e uma pele muito branca. Estava vestida com umas calças de ganga escuras e com uma camisola preta de mangas compridas, tudo muito simples, como eu gostava.

Sempre olhei para as pessoas, sempre observei todas as pessoas que por um motivo ou outro apareciam à minha frente e sabia que às vezes chegava a exagerar na forma como olhava. Este caso era especialmente difícil, pois ela estava muito perto de mim e eu para olhar ia dar muito nas vistas. Já estava quase com o pescoço todo torto numa posição completamente ridícula, quando o empregado do bar se dirigiu a mim e perguntou se me estava a sentir bem. Senti-me a ficar de todas as cores, sabia que ela tinha ouvido, sabia que ela podia ver a aliança na minha mão esquerda, esquecia-me sempre dela até ao momento em que me lembrava que nestas situações ela só fazia com que eu ficasse mais exposto.

Estive cinco minutos a olhar outra vez para o gelo e a pensar em ir dormir, quando de repente senti um frio no estômago e por impulso olhei directamente para ela e disse como me chamava, assim, sem nenhuma explicação ou introdução. Ela olhou para mim, esboçou um leve sorriso, disse o seu nome também e continuou a escrever. Fiquei completamente desarmado, tinha sido uma resposta que não dava para eu perceber nada e assim tinha que insistir e talvez fazer mais figuras tristes. Mas também muito pior não podia ficar e aproximei-me. Perguntei o que é que ela estava escrever e ela disse que antes de eu olhar para ela estava a escrever o nome dela repetidamente, mas que nos últimos minutos tinha estado a apontar o número de vezes que eu olhava directamente para ela, vinte e três. Eu achei impossível mas não argumentei.


Vinte e quatro

Conversámos. Mas não foi uma conversa de bar, não foi daquelas conversas em que se tenta meter toda a vida no menor número possível de palavras. Foi uma conversa calma, ao sabor da noite, em que as pausas em vez de constrangedoras foram reconfortantes. Quem era esta rapariga que eu parecia conhecer há tanto tempo? Que sensação era esta que me fazia estremecer um pouco de cada vez que a sua voz chegava a mim? O que estava eu a fazer?

Chegou a meia-noite e eu achei que me devia ir deitar, estava tudo tão perfeito que pensei que era melhor não exagerar, sabia que mais uns minutos e ainda acabava a desculpar-me por ter olhado tanto para ela ou a explicar que não estava a atirar-me a ela, enfim, coisas minhas. Despedimo-nos com dois beijos na face e nem falámos em trocar telefone, mails ou outro meio qualquer de contacto. Fiquei a vê-la a descer a rua sem nunca ter olhado para trás, esta segurança é que me desarmava, pois eu não sentia que ela fosse assim, achei que devia ser só comigo, um pensamento agradável, ou não.

Fui para o quarto e sentei-me na varanda a olhar o céu. Sempre sentira que não tinha crescido o suficiente, mas agora cada vez sentia mais que não sabia nada de nada. Fiquei ali umas duas horas a pensar na vida e a pensar nela, que estranho encontro, que estranha empatia. Sabia que devia ter ficado com o telefone dela, mas a vida é estranha e arranja maneiras.


Dez

Passou um ano em que não fui ao Porto uma única vez, até que numa tarde de Outubro recebi uma chamada do meu chefe a perguntar se era possível eu ir na semana seguinte passar uns dias ao Norte para acompanhar um projecto importante, eu aceitei.

Apesar de ter ficado no mesmo hotel que no ano anterior não me atrevi a ir ao bar onde tinha conhecido aquela rapariga que de vez em quando ainda invadia os meus sonhos. Tinha medo de não a encontrar e isso ser uma desilusão, um comportamento pouco aceitável para uma pessoa da minha idade, mas que eu não conseguia deixar de ter.

Foi no outro lado da cidade e sem muita vontade que, no terceiro dia fora de casa, eu fui com uns colegas a uma discoteca. Nunca gostara daqueles ambientes cheios de fumo e acabava sempre a um canto a perguntar como é que tinha ido ali parar, enquanto observava a multidão histérica a correr para a pista de dança ao toque do êxito do momento.

Esta vez não foi excepção, mas tinha escolhido um canto muito bom, onde mesmo sentado conseguia observar tudo o que se passava e fiquei por ali olhando para toda aquela gente divertida até que alguém me tocou ligeiramente nas costas. Não posso dizer que tenha ficado surpreendido, era algo que eu não sei porquê já esperava, mas fiquei um pouco nervoso, estas coincidências sempre me tinham incomodado.

Ela estava na mesma, a mesma calma no olhar, o mesmo sorriso doce. Como eu ficava desarmado perto desta mulher, parecia mesmo um adolescente. No entanto, a conversa foi outra vez fácil e a noite foi avançando enquanto falávamos como se o nosso encontro anterior tivesse sido no dia anterior. Até que veio o silencio no meio de todo aquele barulho ensurdecedor e ficámos só a olhar um para o outro sem dizer nada. E eu mudei.


Um

Agarrei-lhe num braço e fiz sinal para irmos embora. Ela pareceu surpreendida com a minha atitude, pareceu não estar à espera do meu olhar decidido, mas eu também tenho os meus momentos e ela não disse nada e seguiu-me apenas com a sua mão na minha.

Caminhámos muito pelo centro da cidade quase deserta, sem que ninguém dissesse uma única palavra. Mas continuávamos de mãos dadas, continuava a sentir a sua pele na minha com um aperto ligeiro mas firme, como se fosse uma criança que seguisse o pai distraidamente, mas com a atenção suficiente para não se perder.

A minha cabeça não pensava em nada e foram momentos muito estranhos, pois eu tinha entrado numa espécie de transe em que sentia que claramente não dominava a minhas acções, embora tudo fizesse sentido. Então parei e pedi desculpa. Ela perguntou, porquê, mas a segurança na sua voz não era a mesma e eu percebi que ela estava nervosa. Ficámos longos minutos a olhar um para o outro no meio da rua e eu sentia-me como se estivesse a ver um filme, como se eu observasse toda esta cena de fora.

Eu não queria ir embora, não queria deixar à sorte a possibilidade de voltar a encontrá-la, mas não sabia o que fazer. Estava frente a uma pessoa que mal conhecia e com a qual só tinha tido duas conversas e com um ano de distância, mas que eu sabia estar ligada de alguma maneira ao meu destino, destino no qual eu não acreditava. Não sei quanto tempo estivemos ali parados, o tempo parou, então eu sorri e larguei a sua mão sem deixar de olhar para os seus olhos. Disse-lhe que nunca a esqueceria e desta vez fui eu que desci a rua sem olhar para trás, algumas lágrimas caíram-me dos olhos, mas continuei.


Dois

No dia seguinte acordei com uma sensação estranha, uma calma estranha tendo em conta tudo o que se tinha passado. E o que é que se tinha passado? Esta era uma pergunta para qual eu não tinha um resposta fácil, decidi então não pensar mais no assunto, seria um sonho para recordar, uma memória meio desfocada que ficaria na minha cabeça sem provocar muito mal, esperava eu.

A semana no Porto transformou-se em duas, em que tive de trabalhar imenso, sem nunca sair à noite, até ao dia anterior a regressar a Lisboa, em que resolvi sair um pouco. Deixei o hotel sozinho e vagueei sem ver por onde andava, até que alguém me perguntou as horas, ainda era cedo, tirei os olhos do chão molhado da chuva e reparei que estava frente ao bar onde ia muito no ano anterior e onde tudo tinha começado, entrei.

Estava praticamente vazio e dirigi-me ao balcão sentando-me precisamente no mesmo lugar onde tudo tinha acontecido. Pedi uma bebida e olhei para ver se ela estava lá, mas não, o lugar estava vazio e senti um aperto no estômago, claro que eu queria que ela estivesse ali, mesmo que não soubesse o que fazer se tal acontecesse, mas eu desejava que ela estivesse ali.

Fiquei muito tempo a olhar para o lugar vazio, como se isso pudesse fazer com que ela aparecesse de repente. Senti-me triste, sentia que tudo o que tinha feito sentido já não fazia. Senti que não devia ter descido a rua sem olhar para trás, senti que tinha perdido uma oportunidade de algo, só não sabia do quê. Voltaria para Lisboa, voltaria para a mulher que amava, para a minha vida que nem sempre era cinzenta e o tempo mudaria tudo.

Levantei-me olhando uma última vez para o lugar cada vez mais vazio e despedi-me, olhei para o outro lado e comecei a andar quando reparei que do outro lado a dois lugares de mim estava ela a olhar para mim. Fiquei sem palavras. Mas ela não e perguntou-me se eu achava que as pessoas fazem sempre as coisas da mesma maneira. Eu disse que sim, pelo menos quando querem que algo de bom volte a acontecer. Ela sorriu e disse que não concordava, era no imprevisto que estava o segredo, não podíamos deixar o destino ditar as suas leis, era preciso que de repente virássemos à direita quando tínhamos de virar à esquerda, era necessário confundir o destino. Eu disse que não acreditava no destino, mas ela sabia que eu estava a mentir.

Acompanhou-me até ao hotel e ficámos parados à porta. Estávamos tão perto que eu sentia o seu perfume e as nossas mãos iam-se tocando como que empurradas pelo vento. Beijei-a, beijei-a como nunca tinha beijado ninguém na vida. O mundo rodou descontroladamente, as luzes dos candeeiros falharam, a chuva caía de uma forma estranha. Era eu ou o mundo tinha mudado? Era eu que enlouquecia, ou a cidade estava parada a olhar para nós? Não a larguei durante o que para mim foi uma eternidade e ao mesmo tempo o momento mais rápido da minha vida.

Olhei para ela e disse que a amava, ela sorriu enquanto uma lágrima lhe escorria pela cara juntando-se aos pingos da chuva. E então voltou a falar com aquela confiança que parecia só ter ao pé de mim. Disse que também me amava e que nunca tinha sentido nada assim por ninguém, disse-me que eu era o destino dela e que nem todas as pessoas encontram quem as pode fazer felizes. Mas também disse que, mais uma vez, tinha de seguir pelo caminho menos óbvio. Vi a mão esquerda dela fechada e pensei que nunca lhe olhara com atenção para os dedos, embora soubesse que eram os mais bonitos que já vira. Sorri e entrei no hotel.

Amanhã

Passou um ano e dois meses desde aquela noite chuvosa e passeio pela minha cidade. Voltei a estar sozinho e mudei tudo na minha vida. Deixei o emprego, voltei a escrever e comprei uma casa com uma vista sobre o Tejo que deixa qualquer um sem palavras. Pode parecer um pouco irresponsável uma pessoa que diz não acreditar no destino fazer depender a sua felicidade de um outro acaso que ninguém pode jurar que vá acontecer, mas a verdade é que já sou feliz, já encontrei a calma que há muito procurava e já encontrei o meu caminho, só que de vez em quando sigo por outra rua, pois é lá que eu a vou encontrar.

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