sábado, abril 24, 2004

A Noite (uma parte do tempo)

Noite

Ouço os tambores ao longe e estremeço um pouco. A chuva cai de forma brutal mas não consegue apagar os archotes que nos deixam ver os nosso inimigos.

Tento que o meu cavalo se mantenha quieto perante aquele barulho ensurdecedor mas não é muito fácil, de alguma forma ele sabe o que nos espera e os seus olhos estão inquietos.

Penso o que estará ela a pensar do outro lado do charco em que se tornou o futuro campo de batalha. Já passaram alguns anos desde aquele encontro e não conseguimos manter as promessas feitas. Por isso hoje vai haver guerra, hoje pode ser que nos encontremos e que tenhamos de lutar um contra o outro.


Dia

Nasci filho de reis e com um destino traçado numa terra envelhecida pelo sangue derramado. Desde sempre que os reinos do norte e do sul lutam, sem que nenhum dos lados consiga vencer e com gerações e gerações perdidas nesta luta esquecida, nesta terra esquecida.

Sabia pois que não era sensato passar a árvore esquecida, marca do caminho sem volta e entrada na terra de ninguém, onde os dois reinos não tinham poder, mas onde os soldados do sul costumavam esperar que algum de nós se aventurasse. Mas há séculos que os príncipes do norte faziam esta viagem e eu não seria o primeiro a quebrar a tradição.

Foi sem surpresa que ouvi o barulho de espadas e o bom senso deveria ter-me feito afastar, mas não o fiz. Subi a uma árvore gigantesca e consegui perceber a origem dos sons de luta, eram os ogres.


Noite

O meu pai olha com pena para todos os homens. Sabe que muitos não voltarão para as suas famílias e que de certa forma ele é o responsável por isso, ninguém lhe irá apontar isso, mas ele sabe o fardo que tem que carregar. E eu sei que um dia, quando o anel passar para a minha mão, também serei o responsável por todos aquelas famílias desfeitas.

Os gritos aumentam e eu sei que já não podemos voltar para trás. Penso se será hoje que será travada a batalha final, aquela sobre a qual os poemas do norte e do sul falam há milhares de anos.

Tento reconhecer caras do outro lado do campo, mas só vejo armaduras negras por entre os pingos da chuva que teimam em cair. No centro dos nosso inimigos um brilho azul chama-me a atenção, será o colar que em tempos tive entre os meus dedos? Será que a minha espada vai ficar parada perante aquele brilho familiar? Como é que viemos aqui parar?


Dia

Os ogres eram os verdadeiros donos daquela terra, mas alguém para além de mim tinha invadido os seus domínios e eles iam no seu alcanço.

Desci da árvore e deslizei suavemente no chão de forma a poder ver melhor o que se passava. Um grupo de ogres tinha encurralado um soldado do sul, que se debatia por entre as espadas enferrujadas daqueles monstros sem dono.

Podia observar o rasto de corpos imundos espalhados no chão desde a estrada a leste até aquele vale sem saída e perceber que não era um simples soldado, mas os ogres eram muitos e ele não ia resistir muito mais tempo. O que eu pensava fazer poderia condenar-me à morte, mas não conseguia ver alguém morrer assim perante bestas sem nenhum tipo de crença.

Elevei-me no ar e a minha espada reflectiu o sol sobre todos. Quando toquei o solo já dois ogres jaziam sem vida e os outros iriam seguir o destino dos anteriores. Um grupo daqueles não podia vencer dois soldados treinados e em segundos os que tinham tido a sorte de não terem conhecido as nossas laminas fugiam desesperadamente enquanto eu olhava para o cristal azul que pendia do pescoço do meu parceiro de batalha e aguardava pela surpresa que iria ter.


Noite

A ordem foi dada e as flechas voam de um lado para o outro contra os muros de escudos. Eu mantenho-me de pé confiante na sorte e devido ao súbito aparecimento da lua consigo ver o inacreditável, dos dois lados todos estão junto ao chão debaixo dos escudos enquanto os archeiros lançam de longe as suas flechas cegas, os dois exércitos orgulhosos parecem grupos de crianças aterrorizadas agarradas às saias das mães.

Duas figuras mantêm-se em cima das suas montadas como se as flechas não lhes pudessem tocar, uma delas sou eu, príncipe do norte, o que carrega a espada dos reis de outrora, o outro soldado sem medo veste de negro e usa a estrela azul ao pescoço.

Um relâmpago faz o meu cavalo estremecer e elevar-se, como se sentisse a fúria contida de todos os milhares de homens que o rodeiam. Eu sinto o mesmo e olhando para o meu pai, dou ordem de corrida ao meu companheiro de sempre. Não vejo o desespero nos olhos do Rei, mas sei que por baixo do metal que lhe cobre a cara as lágrimas correm, ele sabe que vou de encontro ao meu destino e que posso não voltar.


Dia

Tal como esperava não tive nenhum agradecimento e só tive uns segundos de descanso antes de ter de lutar outra vez. Os homens do sul acreditam nas leis antigas de duelo e antes de matarem sabem que se devem dar a conhecer. A máscara de combate caiu no chão e pude vê-la pela primeira vez com os seus cabelos e olhos negros. Uma guerreira que esperava apenas pelo passar dos segundos a que eu tinha direito, depois a luta recomeçaria.

Nas suas mãos vi um arma da qual já ouvira falar, era a espada de dois gumes, manejada por duas mãos e feita do mesmo material que a minha. Não haviam duas espadas daquelas, o meu oponente tinha-se identificado. Eu não sabia que o actual herdeiro do sul era uma mulher.

Ao seu ataque respondi com um desviar, mas não desembainhei a minha espada, esta luta não fazia sentido e eu não iria travá-la. Ela tocou na minha armadura mas não me feriu, estava a conter-se, mas não parava de me tentar atingir e saltámos de rocha em rocha com ela a tentar ferir-me e eu a tentar esquivar-me.

Agarrei de forma firme na sua espada e disse que não lutaria. Ela parou sem saber o que fazer enquanto eu destapava a face e olhou para o símbolo no meu peito. Eu não estava vestido como um príncipe, mas aquela também não era a armadura de um simples soldado. Ela percebeu finalmente e parou, os dois reinos olhavam-se nos olhos.


Noite

Do outro lado também uma figura se começou a mover, duas figuras negras que cavalgam sozinhas ao encontro uma da outra. Não penso no que vai acontecer, só grito para irmos cada vez mais depressa, com as mãos na rédeas e olho para o vulto que se aproxima.

Saltamos no ar mas não nos tocamos, caímos no chão e o metal das nossas espadas reflecte a lua antes de nos aproximarmos. Estamos de cara destapada e podemos ver os olhos um do outro, onde as lágrimas contidas se podem ver quase a cair na lama. Não falamos e parece que o tempo pára naquela noite de tempestade.

De repente gritamos furiosamente e desferimos golpes furiosos contra o outro, somos ambos guerreiros de excepção, quase iguais na arte da guerra e facilmente anulamos os golpes contrários. O que estamos nós a fazer?


Dia

Mais ogres aproximavam-se e saímos daquele lugar, cavalgando lado a lado até ao monte verde que parecia ser o destino dos dois naquela terra hostil. Ela tinha uma voz doce e agradeceu a minha intervenção, apesar de dizer que não era necessária, hoje sei que falava verdade, mas na altura admirei apenas o orgulho nos seus olhos.

Queria que o tempo tivesses parado naquele dia, pois foi o mais perfeito de todos os da minha vida. Subimos ao altar antigo e cada um cumpriu o objectivo da sua viagem, como é que os príncipes dos dois reinos inimigos tinham os mesmo costumes? Não entendíamos o sentido de tal coincidência mas sabíamos que deveria significar alguma coisa.

Conversámos durante horas e antes da noite se aproximar e de termos de voltar para os nossos, fizemos uma última paragem, chegara a hora dos nossos caminhos tomarem sentidos opostos. Não falei muito pois não havia muito a dizer, toquei levemente no seu rosto e fixei longamente o cristal azul. Ela não disse nada, tocou apenas na minha mão e nos rasgões que tinha feito na minha armadura, mas os seus olhos disseram tudo o que eu precisava e eu prometi-lhe que o futuro seria diferente.


Noite

Como é que deixámos isto acontecer? Como é que os anos passaram e não conseguimos que aquele dia tivesse mudado alguma coisa?

Sentimos os olhos dos outros em nós, sentimos o peso de todo este ódio nos nossos ombros. Estou cansado e quase que desejo não conseguir deter um dos seus golpes, olho os seus olhos e vejo que ela também deseja o mesmo. Então avançamos um para o outro e as nossas espadas chocam violentamente deslizando uma na outra, ficamos perto e consigo sentir a sua respiração e o seu cheiro. Trocamos palavras de amor e de despedida e erguemos as nossas armas num gesto que todos compreendem, chegou o fim, a guerra termina aqui, com o nosso amor, com o nosso sangue.

Sem comentários: