terça-feira, fevereiro 24, 2009

O Velho no Cais

Era uma vez um rapaz que vivia num porto. Desde pequeno que aprendera a esperar, sentado no cais de madeira. Olhava as gaivotas, contava os barcos que partiam, aguardava-os ao fim da tarde. O pai desapareceu no mar, num dia de febre passado em casa, em que não o pôde ir esperar. Depois do choro descobriu, o seu destino era ver os outros, guardar os barcos com o olhar, até um dia morrer.

O segredo passou de voz em voz, no remendo das redes, nas rezas das mulheres. No porto, o rapaz cresceu, sem outro dia falhar, debaixo de chuva, da noite no dia, do fogo no céu, de gigantes de espuma. Fez-se velho, com barbas cinzentas, embaraçadas pelo vento. As velas apagaram-se, dos terços só o silêncio, um pescador não se benzeu, no dia em que foi pai. Enquanto ele os guardasse.

Um dia o velho morreu, no sítio onde viveu, caiu para o lado, no desespero dos outros. Deram voltas ao corpo, rasgaram sem respeito, correram para uma casa, que não tinha dono. Mulheres, cartas, uma fotografia velha, um amuleto esquecido, não havia nada. Fugiu-lhes a coragem, perdidos no enjoo, da terra nos seus pés, até à fome e à dor. Depois no medo partiram, de olhos no fim do mar, que tinha sabido esperar. Ao velho nem um buraco, caiu na lama, debaixo do cais de madeira, apodreceu com ela.

Passaram muitos anos, feitos dos mesmos dias. Numa tarde de Inverno, um rapaz sentou-se a contar os barcos, que não tinha visto partir. Esperou até à noite, agarrado ao último dedo, na esperança de o poder largar. Outro pai morreu. O rapaz repetiu uma promessa, já feita no mesmo lugar, e sentou-se no cais. Os corações encheram-se, de sorrisos escondidos, de egoísmo e esperança, de vergonha não sentida. Enquanto ele os guardasse.



Manhã

Bia e Rosa olhavam para a avó de olhos bem abertos. Ficavam sempre sem conseguir falar antes de perguntarem, de ganharem coragem para ouvir outra vez.
— E depois avó, o que aconteceu aos pescadores? — perguntou Bia, sem aguentar mais.
— Nada, durante muitos anos não aconteceu nada. — Fez uma pausa. — Até que um dia houve uma grande tempestade.
— E? — perguntou Rosa, quase se atrevendo a contar.
— Nenhum dos barcos voltou, nem um único voltou — disse a avó num tom grave.
As duas miúdas estremeceram. Era a sua parte favorita.
— E o rapaz, não cumpriu a promessa? — perguntaram ao mesmo tempo.
— O rapaz tinha-se ido embora muito tempo antes, no mesmo dia em que fez a promessa, foi-se embora nesse mesmo dia — respondeu com os olhos a brilhar.
— E o que lhe aconteceu? — Perguntaram baixinho, como se tivessem medo, como se fosse possível, que a resposta não fosse a mesma.
A avó sorriu antes de continuar.
— O rapaz foi viver para longe, esqueceu-se do porto, do cais, de todos os que ficaram para trás, para ser feliz...
— Mas morreu... — deixou escapar Bia, perante o olhar zangado da irmã.
— Sim querida — disse a avó —, ele também morreu no mar, quando ajudava um barco que se estava a afundar.
— Como o avô João? — perguntou Bia. — O rapaz também salvava pessoas no mar?
Os olhos da avó encheram-se de lágrimas. Tentou responder mas não conseguiu. A porta do quarto abriu-se e uma voz fez com que as duas raparigas dessem um salto.
— Meninas, têm cinco minutos para estarem as duas deitadas na cama.
— Mas mãe... — tentaram argumentar.
— Eu não volto a mandar — disse com um ar zangado. — Sabem muito bem que já passa da vossa hora.
As duas deram um beijo à avó e saíram do quarto a correr. A mãe só falou depois da porta se ter fechado.
— Mãe...
— Eu sei Teresa — disse baixinho, mas num tom firme –, eu sei que elas ainda são pequenas, mas é também a história delas, é a história de todos nós.
— Eu sei mãe, eu sei — disse enquanto lhe penteava o cabelo branco com os dedos. — Tenha só cuidado, eu sei que a história que lhes conta, as palavras que lhes diz, não são as que tem na cabeça.
— O mundo delas é perfeito Teresa, eu não nunca iria estragar isso — disse, antes de respirar fundo. — Mas a história é a mesma, acredita que é a mesma.
Teresa não respondeu, olhou para o quarto e para as fotografias em cima da cómoda. Antes de sair falou sem olhar para trás.
— Mãe, acha mesmo que ele se esqueceu? — perguntou. — Ele quando recebeu a notícia da tempestade, dos barcos não terem voltado, ele... ele quase não disse nada.
A avó sorriu antes de responder.
— Não filha, ele não se esqueceu, nunca se esqueceu... só quis poder escolher.

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