segunda-feira, novembro 19, 2007

Tudo o que somos

Sentei-me à espera do metro. Passei as mãos pelo cabelo, apenas para respirar fundo, para lembrar a mim mesmo que estava triste. Ao meu lado estava uma senhora, uma mulher de cabelos brancos com as mãos aquecidas debaixo de um xaile. Passou um homem vestido com um casaco creme e atirou uma moeda para a frente dela. Olhei para o chão e vi um pano cinzento cheio de moedas, demasiadas moedas. Dei por mim a falar, antes de ganhar coragem para o fazer.
- Desculpe, isso não é seu, pois não?
Ela esboçou um sorriso muito leve. Respondeu de olhos nos meus.
- Já cá estava quando cheguei, mas não tinha moedas, deve ser do cabelo comprido.
Não percebi o que ela dizia.
- Como assim?
Ela repetiu com paciência.
- Disse que deve ser do cabelo comprido, as mulheres mais velhas não o usam comprido, muito menos sem o pintarem.
Achei que o silêncio falava por mim, dizia que eu percebia. Passaram duas raparigas por nós e cada uma delas deixou uma moeda. A senhora agradeceu, desejando sorte e saúde. Eu voltei às perguntas.
- Estão aí muitas moedas. Há quanto tempo está aqui?
Ela olhou para um relógio pequeno que tirou de um bolso.
- Há umas duas horas. É de facto muito dinheiro.
Tentei contar, ela interrompeu-me.
- E tirei de lá as notas, o metro a passar fazia-as voar.
Rebentei de ansiedade e falei em voz alta.
- Eu sou invisível, sabia?
Ela não se assustou e falou devagar.
- São como os bares dos filmes, não são?
Não percebi a pergunta, ela explicou antes de eu perguntar.
- Os transportes públicos, acho que são como os bares dos filmes, aqueles onde há sempre um conselho atrás do balcão.
Sorri para ela antes de continuar.
- Sinto-me invisível, sinto-me vazio, sem nada a que me agarrar. Às vezes acho que não existo para os outros, que acabo sempre sozinho.
Ela olhou para mim sem expressão. Tive medo.
- Não me vai dizer que devia dar graças por tudo o que tenho, pois não?
Ela não respondeu. Eu continuei.
- Não me vai dizer que as pessoas é que criam os problemas, vai?
Senti uma mão quente na minha.
- Não, não vou. Queres ouvir uma história?
Disse que sim. Ela inspirou antes de começar, eu percebi que não a podia interromper.

Contou-me que tinha nascido numa aldeia muito longe, a terra dos dias compridos, como lhe costumava chamar. Todos trabalhavam a terra, endureciam as mãos na enxada, vergavam as costas até não se conseguirem endireitar. Era gente pobre, gente de pouca conversa, que as palavras secavam a boca, mesmo a quem tinha pouco que dizer. Ela tinha nascido de destino já feito, entre casas de pedra escura, de barulhos de cascos no chão, de água sempre fria, de jantares em silêncio, de velas contadas para a noite, do adormecer no escuro, de orações repetidas, sem ter nada que pedir, enquanto o terço escorregava entre os seus dedos de miúda. Um dia, devia ter uns doze anos, chegou à aldeia um rapaz. Diziam que era filho de um padre, que o mandara para ali antes de se matar, por não aguentar a vergonha. O rapaz ficou a viver em casa de um prima do padre, que se passou a vestir sempre de negro, mas que não conseguia esconder o ouro, os fios brilhantes entrelaçados ao pescoço, uma riqueza que viria a amaldiçoar. Uma noite, pouco tempo depois do rapaz ter vindo para a aldeia, o pai dela entrou em casa a falar muito alto, tão alto que ela parou de rezar. Encostou-se à porta do quarto e ouviu-o a contar à mãe o que andavam a dizer sobre o rapaz, que ele não era normal, que tinha um pacto com o diabo, que os animais gemiam de medo quando passava, que as árvores perto do riacho estavam a secar, desde que ele começara a passar os dias deitado perto da água. Mas o pai tinha mais para contar, lembrava-se que tinha baixado a voz para ela não o ouvir, mas que não tinha obedecido ao medo e ouviu, o pai falou muito baixo, mas ela ouviu. Todos comentavam que o rapaz não tinha sombra, que não deixava pegadas atrás dele, mesmo quando caminhava na lama, que a sua voz não voltava com o eco, o seu sopro não fazia tremer a chama das velas, que o caminho dele não ficava marcado no mundo, como os espíritos que o terço afastava. Nunca tinha ouvido o pai tão preocupado, o que só compreendera mais tarde, pois aquele mundo fechado, aquele mundo que era igual desde sempre, tinha sido abalado, tinha sido perturbado no seu equilíbrio. No dia seguinte saiu de casa sem avisar, desafiando o que sabia ser a vontade do pai, correu em direcção ao riacho sem saber porque o fazia, sem conseguir deixar de o fazer. Ao chegar viu que as árvores estavam despidas de folhas, mas que pequenos rebentos verdes nasciam nos ramos. O rapaz estava sentado numa pedra. Ela chegou perto dele e tocou-lhe, para saber se era verdade, para saber se ele existia. Ele esperou que ela sentisse o calor, antes de lhe agarrar o braço com força, antes de a magoar sem maldade, de a ferir com cuidado. No dia seguinte ela fugiu, com a ajuda do choro escondido da mãe. Só voltou à aldeia dez anos depois, a tempo de ver o pai sorrir pela primeira vez na vida, antes do seu último suspiro. O rapaz tinha desaparecido pouco tempo depois dela ter fugido, ninguém sabia o que lhe tinha acontecido.

O metro apitou antes de fechar as portas e eu voltei a mim. A senhora agarrava o pulso direito com a mão esquerda. Eu precisei de ter a certeza, para acreditar.
- Posso ver?
Ela não respondeu. Puxou a manga da camisa para trás e mostrou-me o braço. Não tinha nenhuma marca, só o passar dos anos, escritos na pele branca e enrugada. Fiquei preso numa vertigem, tentando perceber o sentido.
- Mas o seu braço não está marcado.
Ela sorriu.
- Pois não, mas não há um dia que passe que não o sinta.

1 comentário:

kolm disse...

E sempre sem palavras que te visito e acredita que não são poucas as vezes que o faço. Apesar de silenciosamente, continuo assídua sem comentário porque tens o dom de me roubar as palavras dos dedos!

Hoje... foi diferente!