sábado, novembro 03, 2007

A Rapariga Sem Nome

— Sua puta! — gritou o homem do casaco preto, ao mesmo tempo que acertava na cara da rapariga do cachecol verde e lilás. — Não pediste àqueles dois armados em hippies. Filhos da puta de meninos da mamã.
A rapariga dirigiu-se ao casal vestido com roupas largas e coloridas. Eles deram-lhe mais sorrisos do que dinheiro. Acho que tiveram pena. O homem continuou a praguejar.
— Merda, assim não consigo. — Largou a guitarra e levantou-se enquanto gritava. — Vou ver se como qualquer coisa. Vê lá se tomas conta das coisas. Puta distraída, andas sempre com os cornos noutro mundo.
Não resisti e aproximei-me.
— Porque é que deixas ele tratar-te assim? — perguntei eu, depois de lhe ter dado duas moedas, de lhe ter tocado nas mãos.
— Ele não é sempre assim, falta-lhe... ele ainda... ele ainda não comeu.
A resposta era envergonhada, mas ela nem por um segundo baixou a cabeça. Não estava a mentir, sabia o que eu sabia, o que todos sabiam.
— Não vejo o que vês — disse eu.
— Não tenhas pena de mim — disse ela de forma calma. — Foi ele o primeiro, o único que me ouviu, que escreveu para mim, as canções... as músicas que eu esperava desde sempre.
Lembro-me dos olhos cinzentos, daqueles que se misturam com todas as outras cores. A cara dela mostrava o pouco que tinha, magra, seca, queimada do sol. Mas não apagava a beleza, era impossível esconder, o que ela parecia determinada em esquecer. Os dedos da mão esquerda estavam quase castanhos, marcados por demasiados cigarros.
— Não os consegues fumar, pois não? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.
Ela riu-se.
— Foda-se! Não consigo mesmo, alguns só lhes dou uma passa para os acender, essa merda faz mal aos pulmões.
— Tu também não... — Arrependi-me. — Desculpa, não tenho nada a ver com isso.
— Deixa, não há problema. Sim, não fumo, não bebo e não me drogo. — Inspirou o ar da noite antes de continuar, a noite que eu não tinha visto chegar. — Por outro lado vivo na rua, com um músico drogado, bêbado e que ainda por cima me bate, por isso não me dês já os parabéns.
Rebentámos numa gargalhada a dois, depois de um segundo de riso contido.
— Como é que ele se chama? — perguntei, estranhando a minha curiosidade.
— Fernando — respondeu ela pensativa, como quem tem algo mais a dizer. — Fernando, Fernando, senhor Fernando, que me tem presa num feitiço.
— E como é que ele te enfeitiçou?
Ela sorriu, e eu senti o coração apertado, por saber que nunca mais a ia ver.
— É engraçado — disse ela meio a rir.
— Então? — perguntei.
— Devia ter sido ao contrário. Ele ouviu-me um dia a cantar, sentada ali em cima no miradouro. Sabes onde é?
Eu acenei que sim, mentindo só para ela não parar a história.
— Esteve uma hora a ouvir-me escondido, pelo menos foi o que ele disse. Uns dias depois encontrou-me no mesmo sítio. Trazia com ele um monte de folhas todas amarrotadas, escritas a lápis com uma letra muito bonita. Contou-me que não dormia há dois dias, que só pensava em mim, que tinha escrito e composto sem parar, que eu o inspirava. Pediu-me que fosse dele, muito antes de me beijar.
Fiquei a olhar para ela, contendo as lágrimas, invejando a sorte deles.
— Deve ter sido especial — disse, sentindo o vento que passava por ela.
A rapariga sorriu de olhos cintilantes, antes de responder.
— Ainda é... pelo menos quando me consigo lembrar. — As lágrimas correram pelo rosto dela abaixo, riscando o pó e a rua, colados à sua pele. — Obrigada! Obrigada por teres perguntado.
Senti vontade de a levar dali, de a proteger, de lhe perguntar se tinha esperança. Não me atrevi. Ela percebeu.
— Queres ouvir-me cantar?
— E ele? — perguntei com medo que ela desistisse.
— Não te preocupes, ele vai demorar. — Pegou na guitarra e puxou-me pela mão. — Vou mostrar-te o miradouro, aquele que tu fingiste que conhecias.

Sem comentários: