segunda-feira, junho 25, 2007

O Aviso

Tenho uma história para contar, uma história que ainda não acabou. Mas primeiro tenho de falar nos livros, nos livros em geral, em todos os que já li, todos os que nunca acabei, ou mesmo os que ainda não abri.

Nunca marquei os livros, desde muito pequeno, quando lia aventuras passadas em ilhas de piratas, de lanches de pão com vegetais frescos, que me pareciam esquisitos, e ao mesmo tempo perfeitos. Nessa altura acabava os livros no dia em que os começava. Acho que foi por isso que ganhei o hábito de não marcar as folhas, porque a maior parte das vezes não chegava a parar. Depois comecei a ler livros maiores, que me passaram a acompanhar durante alguns dias, uns durante semanas. Continuei a não marcar o sítio onde parava, o que me obrigava a procurar, ou então a decorar o número da página, o que hoje não sei se seria capaz, por o sentir tão difícil, um número que não quer dizer nada, no meio de tantas outras hipóteses. Somos estranhos, com a nossa capacidade de perceber diferenças, que temo só existam em nós, como distinguir o lado esquerdo do direito, o azul do vermelho, ou reconhecer um riso no meio da multidão.

Uma noite comecei a escrever, depois de mil tentativas falhadas. Escrevi em dor, no meio de sangue e frio, de perda e redenção, até um final de tarde, em tons de amarelo-torrado. No momento em que acabei percebi, contive as lágrimas no saber, que tinha conseguido dizer o que sentia, mais, que tinha conseguido gritar o que estava tão fundo dentro de mim. Depois desse dia escrevi de forma compulsiva, dizendo o que era impossível de outra forma, sofrendo e sorrindo com as histórias que criava. Mais sofrendo do que sorrindo. E parei de ler. Os livros passaram a ser como portas, aberturas para outras realidades. Bastavam algumas páginas lidas, e começava a criar as minhas histórias, fechando os livros dos outros, que eram apenas pontos de partida.


A história

Três anos depois, um pouco mais talvez, juntei dois ou três livros para as férias, um hábito antigo, mesmo sabendo que não os ia ler. Já com a escolha feita olhei para a estante e hesitei, setecentas páginas pareceram-me demais, mas não consegui resistir. Comecei por esse livro, que falava de magia, de feitiços antigos, de magos e de bruxas. Fiquei preso, sempre foram as minhas histórias preferidas, mas que nunca escrevi, preferindo as pessoas, as experiências que não vivi, mas que consigo contar, por tanto as imaginar. Sorri, por voltar ao meu mundo, por sentir que tinha recuperado uma parte de mim, voando depressa através das páginas, assistindo a bailes no meio de sonhos, num mundo de fantasia, com elfos, fadas, corvos, feiticeiros, espelhos, um mundo onde o bem e o mal não se distinguem, onde é mais difícil escolher o caminho.

Não reparei no primeiro sinal, um pequeno sinal, mas que devia ter observado com mais atenção. Um dedo, como prova de um acordo, um pagamento que seria exigido, num contrato feito só de palavras, e num confiar arriscado. Era esse o segredo de uma das minhas histórias, que chegou na forma de um sonho, o mais completo que já tive, que me fez levantar e escrever, para não esquecer, para conseguir contar mais tarde. Um dedo, que faltava na mão de uma mulher, um pequeno detalhe escondido, que nunca contei a ninguém, um prazer só meu, no criar além das palavras, não dizendo tudo o que sei.

Um dia acordei de outro sonho, no tremer de um beijo, sem conseguir perceber, se o beijo pertencia ao sonho, ou ao meu desejo já acordado, uma diferença enorme, entre o que está no outro mundo, ao que acontece depois, mesmo que no mesmo segundo. Como sempre que acontece, fiquei melancólico, lutando por não ter de decidir, por não ter de saber. Acabei com o livro nas mãos, ignorando o aviso, de que o sentimento de falta é mau companheiro, nas dúvidas que chegam com a manhã.

Foi na página cento e sessenta e quatro. Foi nessa página que tudo mudou, que julguei enlouquecer, por ter a certeza de já ter lido aquelas palavras, de já as ter partilhado, de já as ter repetido vezes sem fim. No medo fechei o livro, senti o coração a bater mais depressa, senti uma vertigem que me fez segurar, um frio no estômago do qual não me consegui libertar. Não percebi o que estava a acontecer, pois apesar de o esperar, ninguém está preparado para ver o reflexo num espelho, sem saber de que lado se está. E ali fiquei, tendo sempre desejado o impossível, sempre chamado o outro mundo até mim, sem saber o que iria sentir, quando o visse à distância de um querer. Quando voltei a abrir o livro, demorei a encontrar, porque não tinha marcado, porque quase posso jurar, que as palavras já não eram as mesmas.

Hoje espero, porque sei, porque é a única verdade que conheço, que algumas vezes, em certos momentos, tudo faz sentido, até que no momento seguinte, a realidade apaga a certeza, talvez por não ser verdade, ou porque ainda não sabemos compreender, enquanto um livro aguarda, com um marcador no meio das folhas, numa página que não decorei.

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