segunda-feira, junho 11, 2007

À Chuva

João olhava para o mar de lágrimas nos olhos. Desde que chegara à praia que chorava sem parar, perdido no meio de pensamentos que repetia vezes demais, de músicas que já deviam fazer parte do passado. Esperava por Maria sem ter a certeza de que ela ia aparecer, sem saber se ia poder desabafar com a única pessoa que o percebia.
Ouviu atrás dele um barulho de carro a parar, seguido de uma porta que se abriu e fechou. A madeira estalou com o peso de alguém a andar em cima dela. João continuou a olhar o mar, apesar de tudo a ansiedade não era tão grande como antes, podia esperar para saber.
Uma voz chegou, sentida como um abraço, apesar do tom brusco.
— Bolas João! Não podes continuar a fazer isto! Sabes em quantos sítios já procurei por ti?
Maria conhecia-o demasiado bem, o que nem sempre ajudava, em desencontros que a irritavam.
— Desculpa ter desligado o telefone — disse, antecipando a crítica —, não era para que tu não me encontrasses.
Ela sentou-se ao lado dele no banco de madeira.
— Pois, espero que não, depois de cinco mensagens a dizer que precisavas de falar comigo. Não podias ter dito onde estavas?
— Eu não sabia Maria, quando dei por mim estava aqui, nem me lembro bem de ter guiado até cá.
Dos olhos verdes continuavam a cair lágrimas, pequenas gotas que se misturavam com a areia. Ela esperava sem perguntar, os dois eram como dois pratos de uma balança, sempre em posições opostas, sempre em equilíbrio, mas nunca à mesma altura. No último ano era sempre o prato dele que estava em baixo, suportando um peso que Maria não carregava.
— Sabes o meu antigo chefe? — disse ele, tentando controlar o soluçar na voz. — Ontem vi-o no metro.
— Aquele em que bateste?
A recordação ainda trazia de volta o sentimento de raiva, mas que, estranhamente, começava a diminuir.
— Eu não lhe bati — disse sem convicção. — Aquilo foi mais um empurrão, ele é que caiu mal.
Maria largou uma gargalhada.
— Caiu mal? Caiu mal de cabeça, queres tu dizer.
— Tens muita piada.
Ela controlou o riso, recordando os momentos difíceis que o amigo passara.
— Desculpa — disse ela, ao mesmo tempo que lhe roubava uma lágrima da face. — Eu sei que tu sofreste muito por causa dele. Mas porque é que te lembraste disso agora?
João falou devagar, como quem pensa em cada palavra antes de a dizer.
— Vi-o ontem no metro, acompanhado de uma mulher, uma rapariga.
Maria esperou.
— Ela devia ter uns trinta anos, um pouco gordinha, mas não era feia, não era... — Tossiu antes de continuar. — Eu nunca achei que houvesse uma mulher neste mundo que o quisesse, era uma garantia minha, de que a vida podia ser justa.
— Castigando-o? — perguntou ela.
— Sim, castigando-o. Eu sei que não é correcto, que não faz sentido passar o resto da vida à espera de o ver infeliz, mas ali naquele momento não fui capaz de conter a frustração, pela bondade no olhar da rapariga, por uma beleza simples, uma beleza que eu achei que ele não merecia.
— Mas não foi só isso, pois não? — disse ela, ao mesmo tempo que o empurrava com o ombro, tentando acalmá-lo.
João tossiu outra vez antes de continuar.
— Não, não foi. O que aconteceu depois deixou-me desarmado.
— Como assim? — perguntou ela de olhos semi-cerrados, por causa da luz e da curiosidade.
— Maria, eles iam um pouco à minha frente, conversando enquanto caminhavam. Eu não os conseguia ouvir, mas consegui perceber que algo se passava, sentia-se um problema qualquer entre eles, como se um dos dois fosse começar a chorar a qualquer momento.
— E depois? — Maria estava ansiosa, dominando as perguntas com medo que ele se calasse.
— Depois? Depois dei por mim a imaginar o que conversavam, a inventar palavras saídas da boca deles, a ter a certeza que estavam a acabar um namoro, que nem sequer sei se existe.
— E?
— E aí começou o meu problema — disse ele em voz baixa. — Dei por mim a desejar que ela não o deixasse, que resolvessem aquilo, que fossem felizes. Merda! Dei por mim parado nas escadas do metro, a desejar que fossem felizes. Percebes isto Maria? Consegues explicar-me isto? Eu sei que não sou assim tão boa pessoa.
Ela olhou para ele e sorriu. João estava com a barba por fazer, uma barba que começava a ser branca e lhe dava um ar engraçado, pois continuava com um ar de miúdo. Maria tinha a certeza que ele seria sempre assim, mesmo quando fosse muito velho.
— Achas que foi pena? — perguntou ela enquanto lhe dava a mão.
— Não, o pior é isso, tenho a certeza que não foi por pena que senti o que te disse. Sabes, eu odeio aquele homem, eu ainda sinto o coração a bater mais depressa quando me lembro de tudo o que ele fez, de tudo o que me aconteceu depois daquele acidente estúpido. Eu não o desculpo, nem acho que ele seja boa pessoa, mas... mas Maria, ontem, enquanto olhava para ele a conversar com a rapariga, nesse preciso momento, senti... — A voz tremia-lhe e mordeu o lábio de baixo. — Bolas! Queres saber a verdade? Senti-me próximo dele, senti uma vontade enorme de que eles ficassem bem, senti que isso era muito importante para mim.
Maria sorriu outra vez, desejando que ele entendesse.
— Olha, já ouviste falar em pessoas que viajam até sítios sobre os quais leram? — A pergunta pareceu estranha, mas deixou João curioso.
— Como assim? Lês algo que se passou num lugar e depois vais visitá-lo?
— Mais ou menos, começou por ser isso. Algumas agências de viagens começaram a aproveitar o sucesso de alguns livros e depois a organizar viagens que seguiam os sítios onde a história se passava.
— Acho que li alguma coisa sobre isso — disse ele sem perceber porque é que ela se tinha lembrado de falar naquilo. — Sinceramente sempre achei que era o tipo de coisas para turistas americanos, daqueles que andam sempre com camisas coloridas.
— Sim, eu sei — disse ela a rir. — Mas houve quem tivesse agarrado nessa ideia e tivesse se lembrado de uma coisa mais simples.
— Algo mais simples? — disse ele intrigado.
— Sim, a ideia é a de ler os livros num sítio que tenha a ver com o título ou com a história dos mesmos.
João passou as mãos no cabelo, tentado perceber o sentido do que Maria lhe estava a dizer.
— Mas não é o mesmo das viagens?
— Não, nada tão elaborado — disse ela entusiasmada. — O livro fala numa praia, tu só o podes ler numa praia, o título é O Comboio Fantasma, tu...
— Leio-o no comboio — completou ele.
— Mas que não tem de ser assombrado — disse ela. — Percebes? A ideia é ser uma coisa simples.
— Maria, acho a ideia muito boa, mas... — A frase ficou a meio de propósito.
— Queres saber porque falo nisto?
Ele fechou os olhos, por não precisar de responder.
— Lembrei-me de uma pessoa — disse ela, aproveitando para recordar. — Uma pessoa que lhe aconteceu uma coisa, não importa o quê, mas algo que lhe mudou a vida.
— E o que é que isso tem a ver com os livros? — perguntou ele.
— Ele... essa pessoa, ele adorava ler dessa maneira, raramente lia um livro sem seguir o ritual de procurar, embora eu ache que às vezes fazia ao contrário, escolhia primeiro o sítio e depois o livro — disse ela no meio de um sorriso.
João sentiu que percebia, antes de ter a certeza.
— E depois? — perguntou ele.
— Aquilo que eu disse que lhe aconteceu, foi uma coisa muito traumática, muito forte, num lugar onde ele esteve anos sem conseguir ir, até que... João, ele um dia apareceu-me em casa, numa noite de temporal, e trazia debaixo da roupa um monte de folhas escritas à mão.
— O que eram? — perguntou ele impaciente, desejando que ela contasse a história mais depressa.
— João, ele escreveu sobre o que tinha acontecido anos atrás, sobre o que carregava com ele todos os dias. — Fez uma pausa antes de continuar. — Ele foi lá, foi lá onde tudo aconteceu e leu o que escreveu, libertou-se, percebes? Se tu o tivesses visto, chorou a noite toda, parecia uma criança.
João ouvia Maria sem dizer uma palavra.
— De manhã queimou os papéis, disse que não precisava mais deles. — Não conseguiu impedir uma lágrima de cair, João fingiu que não reparou.
— Era alguém muito importante para ti? — perguntou com medo da resposta.
— Sim, mas não dessa maneira que estás pensar — respondeu ela. — Foi o meu pai.
João voltou a olhar o mar, lembrou-se dos últimos dias e do que o tinha levado ali. Lembrou-se de tudo o que não entendia, de tudo o que lhe enchia a cabeça. Pensou na história que acabara de ouvir, mais uma vez sentindo, antes de saber.
— Maria, desculpa mas... é que é disto que eu tenho tentado fugir, de tudo o que parece fazer sentido, dos números que escondem segredos, das palavras que parecem ter sido escritas para nós, das músicas que nos fazem doer o estômago. É de todas as obsessões que tento me ver livre, de achar que num segundo posso mudar tudo, dizendo a mim próprio, vezes sem conta, que não existe uma fórmula secreta para resolver todos os problemas.
— Sim, eu sei — disse ela de forma calma.
— Sabes? Então porque é que me contaste isto tudo? O que é que é suposto eu fazer, agarrar em tudo que escrevi nos últimos anos e ir de sítio em sítio ler sobre cada problema da minha vida?
— Não João, tu já resolveste os teus problemas, só não deste ainda conta disso.
O dia ficou mais cinzento, por causa de uma nuvem que tapou o Sol, uma ameaça de chuva que os fez sorrir aos dois, no recordar de tardes de Inverno, em corridas de perder o fôlego.
— Maria, às vezes tenho vontade de te beijar.
Ela sorriu envergonhada, mas sem desviar os olhos dos dele.
— Não sei porque demoras tanto.
A chuva começou a cair.

3 comentários:

laura disse...

Continuas a transpirar esperança por todos os poros. Muito bom!
Gosto especialmente desta descrição: "João estava com a barba por fazer, uma barba que começava a ser branca e lhe dava um ar engraçado, pois continuava com um ar de miúdo. Maria tinha a certeza que ele seria sempre assim, mesmo quando fosse muito velho."
Conheço algumas pessoas assim...

Abelhinha disse...

Hummmm

I. disse...

Muito Bom. Gostei muito, a sério.
Transpira esperança, como já te disseram ;)