terça-feira, novembro 28, 2006

Artur

- Odeio-vos a todos!
Clara gritava, puxava pela roupa, batia com os pés no chão molhado.
- A todos vocês, são uns cabrões, uns merdas, cuspo em cima de todos, odeio-vos!
As pessoas não paravam, andavam mais devagar, mas não paravam, com medo dela, com medo que lhes tocasse, que lhes pegasse uma doença má. Um rapaz vestido de preto tirava fotografias ao longe, apanhava-a a meio de uma queda desamparada, de joelhos em sangue, de mãos esfoladas da cor da calçada, de cabelos sobre o rosto. Mas estava demasiado afastado para ouvir, para ler os seus lábios feridos, que repetiam um choro sem lágrimas.
- Mãe... mãe... preciso de ti, mãe... ajuda-me, ajuda-me que morro, que caio sozinha... eu tenho tanto sono, preciso...
Um homem avançou por entre as pessoas e olhou todos com desprezo. Pegou-lhe ao colo com uma suavidade que ela não compreendia.
- Vão-se embora! Não podem ajudar, pois não? Então vão-se embora, ela não é ninguém para vocês, sigam o vosso caminho, Deus não vos vai castigar, acreditem em mim.

Clara acordou devagar, abriu os olhos com medo, sem saber quem era. Estava deitada num sofá que tinha o mesmo cheiro das bonecas de pano, que embalava antes de dormir. Olhou em redor, procurou uma porta para fugir, tinham tomado conta dela, as feridas estavam limpas, as mãos lavadas, o cabelo apanhado, escovado. As paredes da sala eram azuis, um azul muito escuro, que não fazia sentido, que não combinava com a madeira dos móveis. Fechou os olhos, desejou que tudo fosse um sonho, que toda a sua vida não tivesse existido. Ouviu passos atrás dela.
- Pensei que nunca fosses acordar.
- Que dia é hoje?
O homem fez um ar surpreendido e sentou-se à frente dela.
- E o que te interessa isso? Não importa muito, pois não? Na rua não há dias, não há tempo.
Tentou levantar-se irritada, o tempo era tudo o que lhe restava, depois de ter esquecido os nomes, depois de esquecer as vozes, de tudo se tornar cinzento. Encostou-se sem forças.
- Calma miúda, não te zangues.
Ela não respondeu. Ele falou num gaguejo nervoso.
- Desculpa, eu... eu estou quase sempre sozinho, não me habituo às pessoas... e passo demasiadas vezes por ti, vejo-te vezes sem fim, e olho para o lado, para não sentir.
As lágrimas lutavam para sair, mas Clara percebeu que aquele homem não chorava.
Ele continuou no meio de um sorriso forçado.
- Hoje é terça-feira.
- Terça? Mas... mas, eu dormi...
- Sim, dormiste muito, cheguei a pensar que ias dormir para sempre, que me morrias para aí.
Ele levantou-se e passou as mãos pelo cabelo. Ela tocou na camisa de dormir sobre a pele.
- Foste... foste tu que me trocou a roupa?
- Sim, mas não te preocupes, eu não jogo nesse campeonato, eu... eu... esquece, não olhei, não me interessa, percebes? Não correste perigo nenhum, é com se fosse teu pai... tu tens pai? Tens de ter, não é? De certeza que não nasceste na rua.
A agressividade do homem assustava-a, ao mesmo tempo que sentia pena. Tinha a certeza que não havia maldade nele, que só estava sozinho.
- Sim, tenho um pai. Ou acho que tenho, não o vejo há muitos anos, desde pequena, abandonou-nos às duas, a mim e à minha mãe.
- E ela?
Respondeu a chorar.
- Ela? Não sei, ela ficou, eu vim-me embora, deixei tudo, à procura de sonhos... e deixei-a para trás, nem sequer olhei, não tive coragem.
O homem olhou-a uns segundos, de cara fechada, que se abriu num sorriso.
- Achas que sabes voltar?
Clara riu.
- Acho que sim, sabemos sempre, não é? Mas não sei se quero, não sei se posso.
Ele abriu muito os olhos.
- Não foi isso que perguntei, sabes ou não sabes voltar? É uma pergunta simples, não é complicada, só quero saber se sabes voltar.
As lágrimas voltaram, aos olhos dos dois.
- Sim, sim... sei voltar, o comboio pára muito perto. Eu ouvia-o à noite, quando não conseguia dormir.
- Partes amanhã.
- Mas...
- Já disse, partes amanhã!
Ela não conseguiu responder, não conseguiu libertar-se da mão fechada, que lhe magoava o pulso.
- Agora descansa, eu vou buscar um pouco de sopa, precisas de comer.

O comboio apitou, chamou uma última vez. Clara esperava à porta da carruagem, esperava por uma viagem que não desejara, que lhe enchia o peito de saudades.
- Nunca me disseste o teu nome.
Ele sorriu, mas sem mexer os lábios, um olhar perfeito, que não seria esquecido.
- Eu chamo-me Artur... o meu nome é Artur. Sabes, há tantos anos que ninguém me perguntava pelo meu nome, às vezes dizia-o cem vezes antes de me deitar, para ter a certeza.
Clara passou a mão pela cara de Artur.
- Tens a morada, podes sempre aparecer... um dia.
- Sim, um dia...
O comboio começou a andar. Ela gritou mais alto.
- Artur! Obrigado!
Ele acenou sem olhar para trás. Caminhou devagar, de punhos cerrados, de uma vontade reprimida. No chão sentada, uma rapariga estendeu a mão, de dedos magros e sujos.
- Senhor, uma ajuda.
Ele não escondeu o olhar e tirou uma moeda do bolso.
- O meu nome é Artur.
Fechou a mão dela dentro das suas.

4 comentários:

kolm disse...

Existem histórias que se lêem e que não se conseguem comentar.
Simplesmente um ficar no silencio e mastigar palavra por palavra a imaginar a história quase perfeita...

(sorriso grande)

laura disse...

hummm... delicioso. estás a ficar apurado :)

Paulo disse...

Comentários, é preciso????

BOM NATAL
Paulo

Anónimo disse...

Bom Natal, Artur...