sábado, dezembro 03, 2005

Vocês

A música toca vezes sem fim enquanto escrevo. É a música perfeita pois acaba onde começa e eu sonho em ouvi-la para sempre. Tento chamar a tristeza que me inspira mas não consigo sentir nada, apenas o vazio que ficou, que me acompanha sem me aconchegar. Caio no sofá e tento dormir um pouco, mais uma vez decido fugir da vida e volto ao princípio.


Vocês...

Não gosto deste sitio, não gosto do fumo do meu cigarro e dos desenhos que se formam por cima da minha cabeça. O café espera por mim e fica frio, sei que já não o vou beber e olho para a espuma creme que tapa o castanho escuro que suja a chávena. Aqui nunca há cinzeiros e hesito antes de deixar cair a cinza, tento não mexer o braço e aposto comigo próprio quanto tempo mais a mesa vai ficar limpa.
Na porta alguém olha para mim. Meio homem, meio mulher, uma figura vestida com roupas sem cor parece tentar decidir se deve ou não entrar. Eu baixo os olhos para a mesa preta e rezo para que não venha ter comigo, mas não rezo o suficiente.
Decido que é uma mulher e vejo-a caminhar em direcção a mim, tem a cara coberta de pequenas feridas recentes, como se tivesse apagado todos os cigarros que fuma no rosto já velho. Senta-se à minha frente e o cheiro é insuportável, tapo o nariz com uma das mãos e ordeno às pernas que me levem embora, mas elas não obedecem e eu fico a ouvir um discurso sem sentido. Não sei se a mulher está a falar para mim, não sei se alguém existe para além do seu mundo e pergunto-me porque é que não consigo ir embora. Ela olha-me nos olhos.
- Importa-se que beba este café? Já não vai bebê-lo pois não?
- Não, não vou, pode beber à vontade, mas já deve estar frio.
- Não importa, só quero recordar o sabor, eu bebia café há muitos anos atrás, mas suponho que você deva saber isso.
Não sei do que é que ela está a falar e continuo a não conseguir sair daqui.
- Sim, suponho que sim, não deve ter vivido sempre assim.
Ela sorri e continua a falar.
- Você já escreveu sobre nós. Já esteve perdido, não esteve?
- Já escrevi sobre vocês? Não percebo o que está a dizer, eu escrevo sobre muitas coisas.
Ela sabe que estou a mentir.
- Não tenha vergonha, nós não ficámos chateados e percebemos o que queria dizer. Era sobre esperança, não era?
Sinto as pernas tremer. Como é que ela sabe?
Acaba de beber o café e continua.
- Sabe? Eu já fui bonita, muito bonita e você esqueceu-se disso.
- Mas eu nunca a vi, como é que podia saber?
- Meu rapaz, você foi um de nós, devia saber que todos tivemos vidas.
- Mas eu só escrevi, eu só queria desabafar, só queria que alguém me ouvisse. Nunca quis ofender ninguém. Eu não a conheço, eu não conheço nenhum de vocês.
- Tenha calma, não ofendeu ninguém. Só se esqueceu que eu era muito bonita, só isso. E eu estou aqui para lhe lembrar isso.
Fico calado durante um pouco e tento pôr as ideias em ordem. Ela tem razão eu esqueci-me que ela tinha sido a rapariga mais bonita da cidade, não foi de propósito, mas esqueci-me.
De repente tudo parece diferente, já não sinto o cheiro dela, já não sinto repugnância em olhar para as suas feridas e agarro-lhe numa das mãos. Apesar de suja a pele é suave e eu aperto-a com força.
- Tem razão, eu esqueci-me. Estava tão concentrado em escrever sobre mim que me esqueci de vocês.
- Não faz mal, eu só achei que lhe devia lembrar. Assim pode ser que passe a olhar à sua volta de uma maneira diferente.
- Acha que consigo?
- Eu estou suja, mas não vejo tudo sujo à minha volta.
- Suponho que não...
- Não deixe de escrever e não se esqueça de nós.
Os olhos dela brilham e as lágrimas quase que caiem.
- Eu era mesmo muito bonita, não era?
- Sim, era a mais bonita de todas.
- Obrigado. E obrigado pelo café, tenho de ir embora, ainda tenho de ir tratar de umas coisas.
Fico a olhar para ela e desejo que tenha sorte.

4 comentários:

nspfa disse...

Este blogue tem uma espécie de mistério que o torna aliciante. Eu não tive oportunidade de ler todos os post e por isso tenho receio de estar a fazer uma figura parva, mas mesmo assim considero que a história contada no primeiro parece demasiado real para poder ser inventada. Claro que não é fácil imaginar um mendigo a ler o teu blogue, e por isso esta história que agora contas, pode ser uma invenção intencional para passar uma mensagem, o que é perfeitamente normal. Seja como for, é uma história deliciosa de ler e que nos vem desmitificar certos estigmas que nós próprios nos incutimos.

Parabéns e um abraço

laura disse...

há cafés que marcam, não é? beijo terno.

Abelhinha disse...

Está lindo este conto. Comoveu-me

Gosto da forma como escreves.

Beijos com Mel

Lisa disse...

Muito, muito lindo.
(também já me aconteceu estar tão absorta em mim, nas minhas formas de ver, que me esquecia de como são belas as pessoas à minha volta. às vezes precisamos que nos lembrem. não se era isto que pretendias dizer, mas eu relacionei, se me enganei a culpa é minha)