domingo, dezembro 11, 2005

Um Convite

Estávamos perto do Natal e as ruas estavam cheias de pessoas a fazerem compras. Eu não tinha ninguém, por isso não tinha prendas para comprar.
Sentei-me frente ao computador. Ainda tinha algumas horas de trabalho pela frente e mais valia começar em vez de estar a olhar para as vidas dos outros.
Estava sozinho na sala onde trabalhava, uma sala antiga de paredes brancas e quase sem decoração. Conseguia ouvir algumas pessoas nas salas do lado, mas tinha a certeza que faltava pouco tempo para o barulho do meu teclado ser o único no meio do silêncio da noite.
Como todos ficava triste nesta altura do ano, pensava no que se tinha transformado a minha vida, recordava o passado e fazia planos para o futuro.
De repente alguém entrou na porta por trás de mim e ouvi uma voz conhecida.
- Por acaso não tens um lápis que me emprestes?
Era a Maria, trabalhava na sala a seguir à minha e também costumava ficar até tarde. Não nos conhecíamos muito bem, mas às vezes encontrávamo-nos no café e ela sorria para mim.
- Um lápis?
- Sim, um lápis, acho que já deves ter visto um alguma vez.
Ela estava com um ar divertido e continuou.
- Mas tem de ser um lápis verdadeiro, dos antigos.
- Porquê?
- Porque gosto mais desses. Deixei o meu estojo em casa e agora não sei se consigo continuar a trabalhar.
Sorri por causa do que ela disse e abri uma gaveta de onde tirei um lápis preto e amarelo.
- Toma, espero que gostes deste, é o único que tenho.
Ela olhou para mim com um ar de dúvida e disse.
- Mas ainda não foi usado.
- Não, mas não te preocupes, não o estava a guardar para nenhuma ocasião especial.
- Obrigada, ainda o devolvo hoje, vais ficar até tarde?
- Sim, tenho muito que fazer.
- OK, então até logo.
Fiquei a vê-la a afastar-se e voltei-me para o ecrã à minha frente. Não tinha a menor das vontades de estar ali e recordei Natais passados e os serões em família. Tinham passado poucos anos, mas parecia tudo tão longe de mim. Afastei os pensamentos da minha cabeça e voltei ao trabalho.
Passaram pelo menos duas horas e ouvi outra vez alguém atrás de mim.
- Vim devolver o lápis, mas receio que não tenha sobrado muito dele.
Na mão trazia um lápis com menos de metade do tamanho do que aquele que lhe entregara.
- Estiveste entretida.
- Desculpa, não pensei que fosse escrever tanto.
Ela estava com um ar de quem tinha cometido um grande pecado e eu não pude deixar de achar piada. Achava-a muito bonita e não tinha bem a certeza porque é nunca a tinha tentado conhecer melhor.
- Queres tomar café?
- Isso quer dizer que não estás zangado por causa do lápis?
- Não, não estou zangado.
- Está bem, então aceito.
Levantei-me e dirigi-me à porta. Deixei-a passar primeiro e ela agradeceu baixando ligeiramente os olhos. Enquanto andava pelo corredor percebi que éramos os únicos em todo o andar.
Depois de tirar dois café e de lhe entregar um deles sentei-me no chão, era um hábito meu, ficar até tarde e beber café sentado no chão. Ela não pareceu importar-se, sentou-se ao meu lado encostada ao balcão de madeira e começou a falar.
- Então porque é que estás ainda aqui a esta hora?
- Já te disse que tenho muito trabalho.
- Sim, eu sei, mas qual é a verdadeira razão?
Não pensei antes de responder.
- Na verdade não tenho muita vontade de ir para casa.
- Ainda te custa muito?
- O quê?
- Estar sozinho.
Não respondi.
- Desculpa, não devia ter perguntado.
- Não faz mal, estava só a pensar...se me custa estar sozinho? Não tenho uma resposta simples para essa pergunta. Eu gosto de mim e gosto de estar comigo, mas suponho que ainda não me habituei.
- Mas já passou algum tempo, não passou?
- Já, mas...sei lá, acho que há alturas piores do que outras.
Não falámos durante uns minutos até que ela se levantou e deitou os copos vazios fora. Voltou a sentar-se mas desta vez frente a mim.
- Olhas sempre assim para todas as pessoas?
- Desculpa?
Ela repetiu.
- Se olhas sempre assim para as pessoas?
Eu sabia bem do que é que ela estava a falar.
- Assim como?
- Vá lá...tu sabes, como se estivesses a olhar cá para dentro.
Já me tinham chamado muitas vezes a atenção por causa da maneira como fixava as pessoas, mas nunca daquela maneira.
- Como é que a conversa veio parar aqui?
Ela sorriu.
- Isso não importa, não estás a responder à minha pergunta.
- Não sei o que queres que te diga. Acho que sim, ou se calhar só para algumas, incomoda-te?
- Pelo contrário, sinto-me especial.
- Por isso é que me costumas sorrir quando nos encontramos aqui?
Ela ficou a olhar para mim antes de responder.
- Julgava que não reparavas.
- Eu reparo em tudo, só que nem sempre tenho coragem...
Não consegui continuar.
- Mas tens coragem para olhar.
- Tens razão, mas eu não penso muito nisso.
Ela ficou outra vez a olhar para mim, como se estivesse a ganhar coragem para dizer alguma coisa. Por fim falou.
- Olha, tenho um convite para te fazer.
- Um convite?
Fiquei nervoso.
- Sim, um convite. Eu no final da semana vou para fora passar o Natal com a minha família, mas antes queria te convidar para um jantar em minha casa.
- Um jantar de Natal?
Ela riu.
- Sim, pode ser um jantar de Natal.
- Mas com prendas e tudo?
De repente corei muito, não era aquilo que queria dizer. Mas ela não se desmanchou e respondeu.
- Com prendas e tudo, mas não precisa de ser nada de especial.
Pensei logo num conjunto de lápis e comecei a fazer planos para os ir comprar logo no dia seguinte. Ela interrompeu os meus pensamentos.
- Mas aceitas?
- Desculpa, não disse que sim?
- Não.
- Mas pensei.
- Eu percebi pela tua cara, mas queria ouvir.
Corei outra vez.
- Sim, aceito.
Ela levantou-se e eu segui-a. Parámos à porta da sala dela e eu fiquei a olhar o chão, mas falei.
- Então quando é que é o jantar?
- Que tal depois de amanhã, podes?
- Posso.
- Então está combinado.
Ela olhou para a mesa dela e disse.
- Olha, vou-me embora, tu ficas?
- Acho que não, já não me lembro o que é que estava a fazer, mas não me parece que fosse alguma coisa importante. Vais para o metro?
- Vou.
- Eu faço-te companhia, deixa-me só desligar o computador e arrumar as coisas.
- Porque é que não deixas tudo como está?
- Não gosto de deixar tudo desarrumado.
- Se calhar está na altura de começares.
- Se calhar está...deixa-me só ir buscar o casaco.
- Eu espero.
Antes de desligar a luz olhei pela janela para as ruas vazias, não pareciam as mesmas ruas que observara umas horas antes...

7 comentários:

Abelhinha disse...

até tremi :-) :-) :-) :-)

Agripina Roxo disse...

é sempre muito bom quando olhamos as mesmas coisas de uma forma diferente, quando pintamos os cenários com cores proprias vemos neles sonho e esperança :)
já ninguém gosta de lápis verdadeiros :)
um beijinho grande

nspfa disse...

É incrivel a forma como de uma forma simples consegues tão bem delinear uma história que comove pela beleza que dás às personagens.Uma história simples mas à qual dás uma intensidade que chega pa sonhar e desejar viver momentos assim.
Adorei, e já aguardo pela próxima.
1 abraço

laura disse...

Sbes, quase consigo dar rosto às personagens. Coincidência ou imaginação? No fundo, a criatividade tem sempre uns pingos de realidade salpicados aqui e ali, não tem? Um beijo terno.

Lisa disse...

A-d-o-r-e-i!
Há sempre alguém que repara que nós olhamos de forma diferente :)
E também gosto de lápis a sério, embirro com lapiseiras...

Madame Pirulitos disse...

Linda estória, como sempre. Queres que te diga o que me fez palpitar?

A ideia do olhar, a importância do olhar, aquele olhar

A ideia de que por vezes temos que nos desarrumar um pouco por dentro

A ideia de olhar com outros olhos, com outras lentes...como se fosse a primeira vez.

Lindo

xein disse...

Desculpa a invasão, pelo motivo que é (não só, mas também), mas também eu quero fazer um convite...

Tenho um estaminé novo:

http://www.kompras.net/amostra


Sente-te ;)