quinta-feira, maio 12, 2005

Futuro

Hoje

A campainha toca e eu sento-me no canto, sinto dificuldade em respirar e dói-me o corpo. Esfrego as luvas na cara e limpo o suor dos olhos enquanto reparo no meu adversário sentado do outro lado do ringue, tenho mais uma vez a sensação estranha de que o conheço.

Ouço o som e levanto-me com raiva, avanço em direcção a ele e tento bater-lhe com toda a força que tenho, a ligação que sinto a este homem que não conheço traz-me sentimentos de amor e ódio misturados, eu escolho o ódio e a multidão entra em delírio.


Ontem

Acordo numa cama lavada e pergunto-me onde estarei, só me lembro de estar à chuva e ao frio e de ter pensado que ia desmaiar. Tenho treze anos e vivo na rua desde que nasci, nunca tinha sentido o toque suave de uma cama, nem nos meus sonhos mais arriscados.

A porta do quarto abre-se e entra um homem de cabelo cinzento que me fala de forma calma. Diz que me encontrou inconsciente na rua e pergunta se eu aceito a ajuda dele, não consigo pensar, estou num mundo que não conheço. Sinto o cheiro da comida ao meu lado e percebo que a minha vida vai mudar, que as ruas vão ficar para trás, que vou esquecer o frio.


Hoje

Sou atingido com força no nariz e vejo o meu sangue cair no chão, tenho de esquecer o passado, não posso voltar agora, tenho de me concentrar na luta, tenho que esquecer a dor. Refugio-me nas cordas e com os braços à frente da cara sinto os golpes nas minhas luvas. Quero fugir mas não consigo, quero odiar quem me bate, mas não consigo deixar de sentir que o amo.

A campainha salva-me. Não olho para trás a caminho do meu canto, tenho medo do que vou encontrar, tenho medo de o olhar nos olhos. Tento ouvir o que me dizem, mas as palavras são abafadas pelo barulho das pessoas que gritam cada vez mais alto, demasiado alto, não sei se vou ter coragem de me levantar.


Ontem

O tempo passa e eu cresço num mundo novo, um mundo onde a ciência mudou a vida das pessoas. Mas não mudou a vida dos desgraçados que continuam a vaguear pela rua e que consigo ver por cima das nuvens. Encosto a cara à janela e tento perceber as formas que vejo ao longe.

Duzentos andares abaixo, outros como eu andam pelas ruas desertas, esquecidos do mundo tentam descobrir comida e refúgio, as duas únicas necessidades que sentem todos os dias das suas curtas e intensas vidas.


Hoje

Não me levanto, as recordações tomaram conta de mim e não tenho vontade de lutar. A meu lado alguém grita comigo, mas continuo de cabeça baixa a ver o meu suor juntar-se com o sangue. Quero sair deste lugar, mas sei que a multidão não me vai deixar, sei que ela me vai obrigar a lutar.

Olho por fim o meu adversário que está no meio do ringue. Olha para mim de forma triste, como se me pedisse desculpa, como se me quisesse ajudar. Reparo no seu corpo musculado e na sua cara jovem e tento descobrir quem é este homem que me leva de volta aos primeiros dias neste mundo.

Os segundos passam a correr mas eu sinto que tudo à minha volta corre devagar, como se o tempo passasse mais lentamente para todos os outros. Olho para os seus lábios e reparo que se estão a mexer, não consigo perceber as palavras no meio da confusão, mas o lábios continuam a dizer as mesmas palavras. O mundo está a parar à minha volta e eu esqueço tudo, deixo de ouvir o barulho que me ensurdece.

Compreendo o que ele está dizer e rebento de dor...


Ontem

Olho para ele e não entendo o que estou a ouvir, como é possível acabar assim? Nasci sem pai e nunca pedi nenhum, mas choro neste momento em que sei que o vou perder. Ouço histórias que não compreendo, ouço coisas que não me chocam mas que o fazem uma pessoa diferente da que conheço. Sei que não é a pessoa que julgo, mas não me importo e imploro-lhe que fique.

As minha últimas palavras são de ameaça, são de desespero e digo que vou mudar, que vou ter uma vida diferente da que ele me ajudou a sonhar. Sinto uma mão no meu cabelo e sem abrir os olhos ouço palavras simples que me dizem que tudo vai ficar bem.


Hoje

Parto para cima do monstro que vejo à minha frente, uma aberração que não devia poder existir. Bato-lhe com toda força e quero matá-lo, quero que ela sofra por tudo o que representa, pelo miúdo que perdeu os seus sonhos e pelos outros miúdos que não chegaram a sonhar, quero que morra.

Caio por cima dele sem forças, sinto a sua respiração e deixo-me ficar um segundo eterno no seu abraço terno. A multidão incita-me a pôr um fim ao combate, a pôr um fim a uma vida e penso que mundo é este onde vivo sem ter pedido. Não consigo ver os seus olhos, mas continuo a ouvir a sua voz que me suplica, que me pede algo em troca do passado, um pedido desesperado, um pedido que não posso aceitar.

Levanto-me e desisto, desisto desta luta, desisto deste mundo. À minha volta o silêncio repentino é rompido por alguns gritos de protesto. O sangue no chão nunca é suficiente, o sofrimento é um vicio que esta noite não foi satisfeito.

Não escolho nem o amor nem o ódio e pela primeira vez em anos saio para a rua...

1 comentário:

M de M disse...

e o amanhã....?