terça-feira, janeiro 22, 2008

Mudança

Desde que tinham entrado no carro Margarida estava calada, sempre com a cabeça encostada ao vidro. Rui repetia em voz baixa o convite que não tinha planeado, tentava perceber o que queria, entender o desejo, a falta de calor.
— Para onde estás a olhar? — perguntou quase irritado.
— Estou a contar as luzes ao longe — respondeu ela sem virar a cara. — Não me digas que nunca o fizeste.
— Quando era criança — disse pensativo —, agora esqueço-me, esqueço-me de o fazer.
Margarida endireitou-se no banco.
— Porque é que me pediste para vir contigo? Nós acabámos de nos conhecer.
— Porque é que aceitaste? — perguntou ele.
— Disseste que me mostravas um sítio secreto, como podia resistir?
Rui acendeu um cigarro, inspirou-o lentamente e ofereceu-o de dedos esticados. Ela recusou. Ele respondeu sem tirar os olhos da estrada.
— Soube no momento em que te vi — disse, enquanto mudava a música. — Quis perguntar-te logo, ainda não tinha ouvido sequer a tua voz.
Margarida não respondeu e virou-se outra vez para a noite.

A areia era grossa, daquela que não se solta da pele. Os dois olhavam o céu deitados de barriga para cima. Margarida tentava lembrar-se do nome das estrelas, mas tinha sido há demasiado tempo. Deitou-se de lado antes de começar a falar.
— Quando é que é suposto começar a cena romântica? — perguntou num tom divertido.
Rui desatou a rir.
— Não é suposto Margarida, acredita que não é suposto — respondeu.
— Qual é a tua história? — perguntou ela com um ar muito sério.
Rui voltou atrás, a um livro de banda desenhada que lera quando tinha treze ou catorze anos. No alto de um prédio um homem rezava, pedia perdão pelo que ia fazer, olhava os carros lá em baixo e ganhava coragem. No último momento arrependia-se, desejava viver, abraçar a mulher, proteger os filhos ainda pequenos. Mas o vento não o ouvia, empurrava-o para o vazio, quase sem tempo para gritar. O livro acabava em tons de vermelho, sobre a neve que cobria a cidade.
— Eu trabalhei no metro — disse ele de repente.
— E? Não estás à espera que eu diga nada, pois não? Para mim é um trabalho como outro qualquer.
Era a brusquidão dela que o atraía.
— Posso continuar? — perguntou, fingindo estar zangado.
— Sim, desculpa — disse ela envergonhada.
— Um dia atirou-se um homem para a linha, mesmo à frente do metro. — Fez uma pausa antes de continuar. — Eu não consegui parar o metro, não dava para parar.
Margarida agarrou as mãos dele, estavam suadas e frias.
— Rui, tens a certeza que queres falar nisto?
Ele baixou a cabeça e continuou.
— Tiveram de me tirar de dentro da carruagem em braços. Fiquei paralisado, na expressão do homem que saltou, nos olhos dele nos meus. — Fez outra pausa, para recuperar o fôlego. — Foi a última coisa que ele viu, o meu olhar assustado.
Uma onda rebentou e encheu a noite de pequenos salpicos, de sal que se conseguia sentir lambendo as gotas nos lábios. Margarida juntou-se a ele, abraçou-o com força e esperou que ele continuasse.
— Dois anos! Dois anos Margarida! Foi o tempo que aguentei, todos os dias, estação a estação, sempre a olhar as pessoas, sempre a tentar adivinhar, sempre com um frio no estômago.
Outra onda rebentou com força, como se o mar sentisse o medo. Margarida desistiu de todas as palavras em que pensou, do consolo que não sabia como dar, encostou-se apenas a ele e ouviu o seu coração acelerado.
— E depois? — perguntou ela.
— Um dia conheci um senhor, um homem na paragem do autocarro. Ele meteu conversa, já nem me lembro sobre o quê, só sei que acabei a contar-lhe da minha prisão, dos meus dias sem fim. Acho que ele me fez lembrar o meu avô, ele conseguia sempre fazer conversa com as pessoas na rua.
— Conheço o género — disse ela a sorrir. — Mas e depois? Disse-te alguma coisa que te ajudou?
— Contou-me uma história, sobre uma briga que tinha tido com um amigo de infância. Uma coisa estranha, conheciam-se desde sempre, mas um dia começaram a discutir por causa de algo sem importância e acabaram à pancada. Quando os separaram praguejaram, disseram o que não sentiam, amaldiçoaram-se mutuamente.
— Homens! — disse ela com um ar de reprovação.
— Pois, homens — disse ele sem convicção. — Mas o outro, o que tinha sido amigo do senhor que me contou a história, parece que lhe lançou uma praga muito estranha.
— Como assim? — perguntou ela intrigada.
— Disse-lhe que no dia em que iria morrer, que nesse dia ouviria uma determinada música antes de morrer.
— Uma música? — perguntou ela, cada vez mais curiosa.
— Sim, uma música. Ele até me disse qual era, mas sinceramente não decorei.
Margarida ficou em silêncio. Pensou como reagiria a algo assim, como seria viver cada dia à espera de uma música, que anunciaria a sua morte.
— Sabes o que é que fez o senhor a quem foi lançada a praga? — perguntou ele.
— Não consigo imaginar — respondeu ela. — Passou a viver apavorado?
— Não! — disse ele com um ar triunfante. — Sabes o que é que ele fez? Eu não acreditei quando ele me contou.
— Conta-me Rui! — gritou ela impaciente.
— A partir desse dia, logo na manhã seguinte, a primeira coisa que ele passou a fazer foi ouvir a música, a que o devia matar.
— Bolas! — exclamou ela. — Ele enfrentou o medo, imagino até que o tenha feito desaparecer. Já o estou a ver, a colocar a agulha sobre o disco, um ritual que às tantas deixou de fazer sentido, que continuou só por hábito.
Rui olhou-a, escondendo o resto da história durante um minuto.
— Não Margarida, ele contou-me, que não havia um só dia, um único dia, em que não sentisse medo, quando a música começava a tocar.
Margarida sentiu a respiração de Rui, a vontade, o pavor de continuar sozinho. Sorriu antes de falar.
— Deixaste o emprego no metro no dia seguinte, não deixaste?
Rui esperou um segundo, para sentir que era verdade.
— Sim, desisti.

Margarida olhava as luzes outra vez. Inspirava o fumo que enchia o carro, que lhe lembrava as viagens com os pais, ela e a irmã à espera do cheiro de um fósforo riscado, da madeira a arder, do ardor na garganta. Encostou a cabeça no ombro de Rui e fechou os olhos. Deixou-se embalar pelo caminho.

2 comentários:

kolm disse...

Das palavras um sopro magico, um sopro que nos deixa sempre a pensar em pedacitos tão familiares de história “irreais” tão “reais”.

Hum... Penso que reagiria da mesma maneira, jamais viveria na expectativa da musica que poderia tocar a qualquer momento... Não te lembras mesmo do nome da musica?!

Um sorriso grande rspiff.... do tamanho do mundo!!!
p.s. Estive a ver as tuas fotos... cada vez melhores...

Abelhinha disse...

lindo