sexta-feira, outubro 21, 2005

Um dia

No carro do lado vejo um homem a cantar, não consigo ouvir a sua voz mas tenho a certeza que está a ouvir a mesma estação de rádio que eu. Os lábios dele acompanham o ritmo que ouço e fico a olhar para ele assistindo a um concerto invulgar.
Tenho vestido um casaco novo que decidi estrear esta manhã e sinto-me confiante, como um herói no seu fato de cores berrantes que percorre as ruas em defesa dos mais fracos sigo por entre o trânsito e a chuva. Mas o casaco é preto e o meu humor é instável, uma melancolia que me acompanha sempre ao mesmo tempo que observo o mundo e sinto os pequenos prazeres.
De repente ouço um estrondo e tudo fica escuro, parece que entro dentro de um sonho mas sei que estou acordado. Não compreendo o mundo à minha volta e o meu corpo parece que não tem peso, os meus sentidos transmitem-me sensações estranhas e diferentes e tento perceber o que aconteceu.
Imagens distorcidas começam a formar-se à minha frente e reparo que estou a flutuar, por baixo de mim o metal retorcido não me deixa muitas dúvidas, mas não tenho explicação para o meu estado e procuro por mim no meio da confusão e das luzes que me ferem os olhos. Dentro do sonho adormeço.

Estou deitado numa cama de lençóis brancos com máquinas estranhas à volta, tenho uma expressão serena na face, mas desconfio do que vejo. Tenho a certeza que a dor deve ser insuportável e subo em direcção ao tecto, tento afastar-me do meu corpo e recuso-me a aceitar que sou eu que estou ali deitado, que estou a observar a minha própria vida neste momento.
Sinto uma mão na minha e olho para dedos transparentes que deixam passar a luz que entra pela janela. Uma figura conhecida está sentada ao lado da cama e percebo que estou vivo, que ainda estou ligado à figura frágil deitada na cama, um corpo sem alma mas que vive.
Tenho medo, sei que devo voltar, mas tenho medo. Aqui estou em segurança, mas não sinto nada, não sinto alegria, não sinto tristeza, apenas observo e penso em quem sou. Não sei onde estou, mas sinto-me sozinho, sinto que nada faz sentido, mas não tenho coragem de enfrentar a realidade.
Por fim desisto e desço devagar, toco com a mão na minha e tenho apenas um segundo de hesitação antes de entrar dentro de mim. Nunca senti uma dor tão grande, mas sei que não podia ser de outra maneira, pela primeira vez na vida enfrento todos os meus medos e vivo, vivo de forma frágil, mas sinto, sinto dor e alegria, sinto a calma pela qual ansiei desde sempre.

Estou parado num semáforo e reparo que estou no cruzamento onde tudo aconteceu, não fico assustado mas não resisto a tentar recordar o que não vi. A meu lado uma rapariga canta de janela aberta e acompanha o fim de tarde, fecho os olhos por um segundo e sinto o cheiro da minha pele misturado com o dos carros que passam. Quase consigo sentir que o tempo não passou e quando a luz fica verde, arranco e sigo como se nunca tivesse estado ali, como se nada tivesse acontecido.

Tudo mudou, mas sou o mesmo...

2 comentários:

laura disse...

essa é a grande questão: tudo muda, mas nós ficamos os mesmos. ou será que não? não mudaremos nós também?

xein disse...

Benvindo de volta...

Sente-te...

Mais um belo texto!!! Mais uma reflexão...