terça-feira, outubro 25, 2005

Sons

A noite cai e eu estou sentado numa esplanada a olhar as pessoas. O verão está a chegar ao fim e tento aproveitar os últimos dias de bom tempo. Tenho saudades do frio, mas hoje quero despedir-me das noites ao ar livre.

A maior parte das pessoas à minha volta estão a começar a jantar e o barulho de fundo das suas conversas aconchega-me enquanto a minha cabeça voa para longe do sitio onde estou. Recordo muitas noites, muitas companhias e sorrio ao lembrar-me de tudo o que me aconteceu nos últimos meses. Devia estar triste, devia estar melancólico, mas não consigo e estremeço ligeiramente ao recordar emoções que passaram mas que ainda me acompanham.

No meio do meu sonho sou despertado pelo som de uma guitarra a poucos metros de mim, alguém começa a cantar uma música e eu abro os olhos para observar o espectáculo que me é oferecido. À minha frente um rapaz com pouco mais de vinte anos toca energicamente abafando a sua própria voz rouca que canta músicas antigas. Apesar da pouca idade o rapaz tem uma expressão de quem já passou muito na vida, há qualquer coisa nele que nos faz acreditar que os poucos anos de vida que tem estão cheios de histórias que podemos adivinhar enquanto olhamos para a sua cara triste.

Estou tão concentrado a observar o rapaz que não reparo logo que a seu lado uma rapariga dança com umas fitas nas mãos com as quais desenha figuras imaginárias no ar. Tem um ar mais velho do que ele e uma cara pouco simpática, parece apenas interessada nos passos de dança que vai executando pelo meio das pessoas, passando com as fitas a poucos centímetros das cabeças de quem, como eu, observa aquele espectáculo de princípio de noite.

Deixo os meus pensamentos de lado e olho para os dois enquanto a música continua e eles trocam sinais mudos. Ela parece estar zangada com ele, como se ele não tocasse a música da maneira que ela quer, como se não houvesse uma sintonia perfeita entre os dois e isso tirasse brilho à sua dança. Vejo na cara dele um esforço para a acompanhar e um sorriso ligeiro na boca dela dá-me a perceber que ele é bem sucedido. E ficam assim a olhar um para o outro enquanto as fitas continuam a voar reflectidas nos olhos de todos os que olham para eles.

Por momentos tenho inveja, apesar de ver duas figuras frágeis e sujas tenho inveja da força que vejo entre os dois, da vontade de melhorar, da fuga do que é normal, do que é cansativo, da vontade de ser feliz, apenas esse desejo sem que mais alguma coisa importe.

Não percebo os meus sentimentos e a forma como eles invadem o meu mundo e tento encontrar algum defeito no que me atrai, no que me faz não conseguir deixar de olhar. Vejo outra vez duas pessoas de aspecto estranho, duas pessoas que a maior parte do tempo não têm um ar feliz, mas que olham entre si como se pudessem viver apenas da presença do outro.

A música acaba, ouvem-se algumas palmas e penso se outros como eu ficaram cativados por aquele par e pelas emoções que parecem sair do meio dos dois. Como se o verdadeiro espectáculo que apresentassem fossem os sorrisos quase imperceptíveis que trocam como que dizendo que estão unidos, que são um só.

A rapariga dirige-se à esplanada onde estou sentado e estende uma pequena caixa preta à espera de algumas moedas que paguem o seu esforço. Não posso deixar de reparar no seu ar pesado e pouco feliz e em como isso não faz sentido. Como é que a mesma pessoa consegue transmitir sensações tão diferentes? Como é que eu ao olhar para ela sinto ao mesmo tempo, inveja, repulsa, amor e tantos outros sentimentos contrários?

Então ela chega ao pé de mim e estica uma das mãos de forma envergonhada, não consigo ficar indiferente a tudo o que eles me fazem sentir e dou por mim a deixar algumas notas dentro da caixa cheia de moedas brilhantes. A rapariga olha para a caixa e começo por ver na cara dela uma expressão de espanto, logo seguida de um sorriso que aparece primeiro de forma tímida até se transformar e iluminar a noite toda e me fazer tremer.

Enquanto vejo os dois em direcção a outra esplanada relembro vezes sem fim aquele sorriso e o que ele me fez sentir. Penso mais uma vez na minha vida e quase que posso jurar que consigo ouvir música na minha cabeça, como se de repente todos os meus medos, todas as minhas ansiedade tivessem sido soprados para longe de mim. Sinto os olhos cheios de lágrimas e não quero que este momento acabe, quero poder estar em paz comigo mesmo para sempre, quero esquecer tudo o que passei neste verão que agora acaba, quero sorrir...

6 comentários:

trigolimpofarinh@mparo disse...

Tens aqui uma boa razão para sorrires: belo texto.

xein disse...

Escreves belos textos, tens bom coração e o Verão acabou..... És capaz e estás vivo, por isso..... SORRI!!!


Sente-te!!!

Agripina Roxo disse...

queria saber o que dizer-te, queria saber poder dar-te um abraço, saber poder sorrir-te.
mas nao te conheço e nao sei o porque das palavras tao trsites e tao sos, das palavras tao sentidas e tao pouco doces...

vou dizer-te um segredo:
as conchas sao o sorriso do mar.

um beijinho grande

Lisa disse...

Toma lá também o meu sorriso
:)

Abelhinha disse...

Percebo o porquê da tua pergunta na minha Colmeia.

E sim, disseram-me tal e qual eu transcrevi!

Volta sempre.

Beijocas

laura disse...

o segredo talvez seja fechares os olhos e perceberes qual é a melodia dentro de ti.