sábado, setembro 17, 2005

Treze

Volto, volto porque na verdade nunca fui embora. E embalado pelo perfume que sinto mais próximo desço as escadas sem olhar para os degraus que piso, pedras alisadas pelo tempo e por todos que aqui passaram antes de mim.

Lembro-me do dia anterior e das lágrimas que correram pela minha cara enquanto guiava para longe de ti, enquanto me afastava do que me fez sofrer. Hoje o ar fresco ajuda-me a esquecer e continuo a olhar para a cidade que nunca se vai embora, para os prédios antigos que brilham ao fim do dia com os seus vasos de flores coloridas.


Dois

Carlos era um miúdo diferente e desde muito novo que tinha um olhar estranho, como se conseguisse ver mais do que os outros, como se aqueles enormes olhos verdes pudessem olhar para dentro de cada pessoa, vasculhar as nossas almas e saber quem somos.

Luísa tinha uma pele muito branca e umas mãos com dedos compridos que tocavam de forma gentil em tudo. Sentir aquelas mãos de criança desarmava qualquer um, como se nunca ninguém tivesse sentido nada igual, um conforto que invadia todo o corpo, um pequeno medo que se sentia e uma calma que perdurava durante horas.


Encontro

Carlos e Luísa encontraram-se por acaso, uma rua deserta de Lisboa, umas escadas velhas que subiam e desciam, dois olhares perdidos que se encontraram, um toque ligeiro de mãos enquanto passavam um pelo outro. Tinham apenas treze anos e aquele momento duraria para sempre.


Carlos

Carlos olhava para aquela rapariga parada à sua frente que parecia esperar por algo, não sabia bem porque parara, mas ali estava naquele final de tarde a olhar para alguém que não conhecia, mas que compreendia, a olhar para as mãos que tocara ao de leve e que ainda sentia na sua pele, como se tivesse ficado marcado e ficasse para sempre preso àquele lugar.


Luísa

Luísa não conseguia afastar o seu olhar daquele rapaz que olhava as suas mãos, sentia-se presa, sentia-se enfeitiçada, sentia-se aconchegada. E imaginava-se para sempre envolta naquele abraço invisível que não sabia explicar, mas que sabia bem e que fazia doer.


A Eternidade

Durante longos minutos ficaram como estátuas à frente um do outro sem que uma única palavra fosse dita, sem que um som pequeno que fosse saísse das suas bocas que no entanto sorriam levemente. Apenas gozavam o momento, o tempo não passava e a despreocupação própria da idade misturava-se com a brisa que lhes fazia voar os cabelos.

Sentaram-se num degrau e continuaram calados a ver o sol que se punha por trás de um prédio pintado de branco e amarelo. As sombras estendiam-se no chão e quase lhes tocavam os pés enquanto fugiam, subiam os degraus e sentavam-se mais acima, como se não quisessem perder aquele pôr-do-sol, como se cada degrau em que se sentavam os ajudasse a prolongar aquela tarde.

Por momentos imaginaram uma escadaria infinita de onde pudessem ver o fim do dia para sempre, um mundo onde pudessem fugir da noite e nunca aparecessem as estrelas, um mundo onde a hora fosse sempre a mesma e nada mudasse, apenas uma visão perfeita na companhia de alguém que nos conhecia desde sempre.


Reencontro

Continuo a descer as escadas atrás de algo que não sei se ainda existe. Lembro-me mais uma vez da discussão que me fez sair de casa sem rumo, da noite passada a guiar debaixo de uma chuva que teimou em não me dar descanso, da manhã perdido no meio de ruas desconhecidas. Até regressar a este local que sempre me acompanhou, até voltar a descer as escadas que mudaram a minha vida, até voltar a sonhar contigo.

Pergunto-me se vinte anos depois seremos assim tão diferentes, pergunto-me onde estarão os dois miúdos que sentados nestes degraus viram a vida de uma maneira diferente e que sonharam juntos. Não quero ter de enfrentar esta vida que me abafa, quero voltar àquela tarde em que tudo fazia sentido.

E de repente a minha mão toca noutra, como é que pude não reparar em ti? Como é que mais uma vez te escondes neste sitio onde tudo é estranho? Abro bem os olhos e tento ver a rapariga que encontrei aqui pela primeira vez, um encontro tantas vezes repetido na minha cabeça, nos meus sonhos. Não é difícil, tu continuas a mesma, as mesmas mãos brancas e compridas, o mesmo toque mágico que me faz tremer.

E pela segunda vez na vida assistimos ao pôr-do-sol nestas escadas velhas que nos conhecem, neste sitio que vai ser sempre nosso e onde podemos sorrir sem ter de falar, onde nunca teremos idade e onde vou sempre amar-te...

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