quarta-feira, agosto 06, 2008

O Corcunda

Há demasiadas histórias de corcundas. Monstros, anjos escondidos de dentes podres, de sorrisos inocentes. Há demasiadas histórias sobre pessoas, porque todos o foram, um homem, uma mulher. Demasiadas histórias, sobre um destino alterado, por causa de um alto nas costas, de um curvar dorido. Nunca quis contar a minha, eu também disfarçado, preso nas sombras de uma casa velha. Mas hoje, nos meus últimos dias, já não consigo olhar o céu, só as palavras que escrevo, que desenho devagar. Desejo, sonho em morrer aqui, sobre a minha vida, feita de criar outras, de inventar destinos, em milhares de folhas pautadas. Sei que é difícil acreditar, mas eu não nasci corcunda. Difícil, para muitos impossível, descendo as escadas do casarão, contemplando as figuras, quadros pintados, dos que vieram antes de mim. Uma aberração atrás da outra, poupados ao circo, aos risos e espanto, mas para sempre marcados. Há anos que não desço as escadas, talvez por medo, de enfrentar o espaço vazio, guardado para um último quadro. Mas lembro-me da primeira vez que o fiz, que olhei de frente para a minha herança, e do orgulho nos olhos do meu pai, depois de correr até ele, de saltar para o seu colo e de lhe contar, que descobrira um segredo, que os homens nos quadros, estavam todos a sorrir. Quando fiz dez anos, no dia em que fiz dez anos, o meu mundo mudou. O meu pai, o meu avô, levaram-me até uma porta, que estava sempre fechada. A minha mãe escondeu as lágrimas, abraçada às minhas duas avós, não por medo, por tristeza, mas por saber, que ali, naquele momento, tudo começava, mais uma vez. Entrei à frente, depois o meu pai, o meu avô mais devagar, sempre no escuro, até a porta se fechar, sem ninguém lhe tocar. Só então a luz, mil velas acesas, sem perceber porquê. Nesse segundo vi, escadas sem fim, portas, mesas de trabalho. Só depois reparei, que as paredes, todas as paredes, não estavam pintadas, nem forradas a papel, mas sim tapadas, de forma perfeita, por milhares, milhões, por livros que não era possível contar. O meu pai esperou, aguardou uns minutos antes de falar, depois do meu avô anuir. Contou-me a história, que também era a minha, de todos os que ali tinham entrado, do tesouro que guardavam, escondido, mas que deveria crescer, porque sempre haveria espaço, um lugar vazio numa estante, à espera de outro livro, de mais histórias. Seria essa a minha tarefa, como tinha sido de tantos antes de mim, a partir daquele dia. Lembro-me de olhar para os dois homens ao meu lado, principalmente para o meu avô, duas vezes pai, mais curvado, apoiado numa bengala escura, que o afastava do chão. Lembro-me de ele me começar a explicar, sem pedir desculpa, que eu seria como eles, uma maldição que não era verdadeira, só aos olhos dos outros. Um dever, que não podia ser leve, e só por isso pesado. Ouvi-o em silêncio, em respeito e amor, ouvi o que já sabia, desde que a porta se fechara, quando senti a pressão nas costas, pela primeira vez.

2 comentários:

miak disse...

:)

Rafeiro Perfumado disse...

E eu a pensar que eles iam levar o puto a uma casa de meninas...