segunda-feira, setembro 10, 2007

Mãe

Toda a vida vi a minha mãe a chorar quando lia. Não conseguia tirar este pensamento da cabeça, a livraria estava quase a fechar e eu só pensava nela agarrada a romances antigos, daqueles que pareciam ter tido sempre as folhas amarelas, quase castanhas. Não sei onde é que ela os ia buscar, alguns tinham as capas rasgadas, outros não tinham sequer as primeiras páginas, o que não a parecia incomodar, quase podendo jurar que a maior parte das vezes começava a meio, em histórias já conhecidas. À minha frente vi um desenho que me atraiu a atenção, passei os dedos sobre um relevo que não existia, como se pudesse sentir, para poder escolher. Pequei no livro e dirigi-me ao balcão. Estavam duas pessoas à minha frente, um rapaz que insistia numa queixa qualquer, uma rapariga longe, de olhos muito abertos, que piscavam um de cada vez. Voltei às tardes de criança. Esqueci-me do tempo.
— Boa tarde — disse a rapariga atrás do balcão. — É só o livro?
— Sim — respondi, despertado do sonho.
O barulho da máquina registadora fez-me levantar os olhos, que me levaram a outros em lágrimas. A rapariga tentava secar as gotas que manchavam o vermelho da capa.
— Desculpe, acho que é melhor levar outro — disse ela. — Não faço ideia se vai ficar marcado.
Não resisti à pergunta.
— Posso perguntar porquê?
Ela sorriu antes de responder.
— Não são lágrimas tristes, este livro traz-me boas recordações, sempre que o leio farto-me de chorar.
Lembrei-me da minha mãe, naquele preciso momento lembrei-me de anos de dor.
— Sabe, esse livro é para a minha mãe — disse, de olhos presos aos da rapariga. — Ela chorava sempre que lia.
— Disse que ela chorava, já não o faz? — perguntou ela.
— Acabo sempre a falar no passado — disse eu depois de pensar um segundo. — Acho que o faço de forma automática, aconteceram muitas coisas no passado.
— Eram os melhores momentos, não eram? — perguntou ela num tom impaciente, de quem conseguia adivinhar.
Fui apanhado de surpresa. Nas palavras dela percebi. Levei um minuto a responder. Ela esperou, sem precisar de repetir a pergunta.
— Bolas! Nunca tinha pensado nisso — disse eu com o peito a rebentar. — Sim, eram os melhores momentos, quando a apanhava a chorar, no medo de perguntar, para apenas descobrir, que as lágrimas eram pequenos sorrisos, no sentir de histórias de paixão.
Esperei outra vez, antes de continuar.
— Sim, foram os únicos momentos, em que tenho a certeza que ela estava feliz.
No dia seguinte ofereci outro livro à minha mãe, com uma dedicatória que a fez chorar. O livro de capa vermelha ficou para mim, as manchas das lágrimas nunca saíram, e ainda me fazem sorrir.

4 comentários:

miak disse...

Sim, é melhor este caminho. De pensar nos momentos felizes. De guardar as lágrimas como recordações de um passado.

Anónimo disse...

Assim fica uma boa recordação, recordada, para sempre, de uma forma feliz. Assim todas as recordações deviam ficar.
Bjs

ana salomé disse...

:)

Kiau Liang disse...

De lágrima no olho....






:)