terça-feira, novembro 02, 2004

Duas vidas

Entrei na papelaria à procura de uma revista que tinha a certeza ainda não tinha saído naquele mês. Percorri os corredores despreocupadamente até dar de caras com um livro de viagens. De repente, senti um cheiro intenso a livros, como se todas as obras ali à venda estivessem a chamar-me à atenção, olhei para a capa do livro de viagens mais uma vez e peguei-lhe devagar. Parecia que sorria para mim, envolvia-me com as histórias de locais longínquos e deixava-me a sonhar com outra vida, com as viagens que eu poderia ter feito, com as pessoas que eu podia ter conhecido. Seria tarde demais para seguir o meu destino?

Caminhei devagar para casa sem conseguir tirar o livro da minha cabeça, quase não chegara a folheá-lo, mas sabia bem o que podia encontrar nele. Os sons mudos do deserto, a chuva forte na minha cara, o fumo do tabaco seco a encher-me os pulmões. Experiências que eu não tinha podido ou querido ter, aventuras onde outro tomara o meu lugar. O que é que ele teve de deixar para trás para poder roubar o meu caminho? Quem teria ficado à espera durante meses infinitos? Quem se teria cansado dos sorrisos no regresso?

Meses antes tinha tido um sonho, uma viagem por savanas sem fim com o céu a olhar para mim. Na altura não tinha entendido o significado do sonho e escrevera sobre ele apenas para não me esquecer das sensações que senti e que eram novas. No meio de uma noite, acordado por acaso, tinha-me sentido aconchegado por sonhos estranhos de viagens que não desejara, por locais que nunca tinha imaginado visitar. Tinha sido sempre assim, as viagens mais improváveis apareciam sempre nos meus sonhos. Tudo sem nenhum significado óbvio, sem nenhuma lógica que eu entendesse quando acordava, mas que com o tempo iam crescendo na minha cabeça trazendo novos sonhos.

Neste momento não posso viajar, não posso partir para as ilhas distantes e nadar com as crianças de cabelo estranho, mas posso continuar a ouvir a música que ouço nos sonhos e posso criar os meus próprios sonhos. Só não entendo o que está à frente dos meus olhos fechados, não sei ainda que música é que tocava no momento em que as folhas secas e coloridas voavam pelo chão da igreja, não sei porque é que a noite me chama e me faz sonhar.

Penso mais uma vez no livro de viagens e não consigo deixar de pensar que tudo tem um sentido, um sentido que posso nunca descobrir, mas que consigo sentir...

Sem comentários: