Telma: vontade, desejo...
Luís entrou no hipermercado e estranhou o ambiente. Embora estivesse mais perto da sua casa preferia ir a outro, preferia pagar um pouco mais para se sentir mais à vontade, para sentir que pertencia a um mundo mais perfeito, mais bonito. Mas naquela tarde tinha pressa e não tinha tempo para passear pelos corredores, era mesmo só entrar, comprar o que queria e sair rapidamente, por isso era preferível um sítio com menos gente.
Apesar de tudo demorou mais tempo do que tinha pensado, não conhecia bem o sítio onde estavam as coisas e não conseguiu encontrar logo o que procurava. Só depois de fazer duas vezes o corredor principal descobriu o que queria, uma nova marca de comida pré-cozinhada que vira anunciada na televisão e que tinha decidido ir ser o seu jantar.
Enquanto caminhava em direcção à zona das caixas olhou para as poucas pessoas que circulavam à sua volta. Eram diferentes das que estava habituado a observar nos sítios que costumava frequentar e recordou-se de quando era um miúdo e vivia fora da cidade. Tudo tinha mudado desde essa altura e recordava agora esses tempos.
Ao chegar perto das caixas reparou que estavam praticamente vazias, podia escolher a que lhe apetecesse e avançou para a que estava mais perto de si onde uma rapariga vestida com um casaco azul e vermelho aguardava pelo próximo cliente. Pôs a embalagem que trazia na mão no tapete rolante e cumprimentou-a.
- Boa tarde.
Ela respondeu.
- Boa tarde, tem cartão de desconto?
- Não, não tenho. Eu não costumo vir aqui.
- Então tem que começar a vir mais vezes, se for ao balcão principal pode pedir lá um cartão.
- Obrigado pela sugestão, mas hoje estou com pressa, talvez noutro dia.
Enquanto falavam Luís observou-a a passar devagar a embalagem pelo leitor de código de barras e a pô-la num saco de plástico. Normalmente irritava-se quando demoravam tanto tempo, mas naquele dia não pensou nisso, deixou-se ficar apenas a vê-la a mover as mãos com delicadeza. Ela devia ser mais nova do que ele, talvez tivesse menos uns sete ou oito anos e era muito bonita, mas era diferente das raparigas para as quais costumava olhar, era mais simples e estava menos arranjada. Pensou que talvez só estivesse a achar isso por causa da profissão dela e desejou não o estar a fazer, mas a verdade é que deu por si a reparar que as outras raparigas das caixas não estavam vestidas da mesma maneira e a pensar se ela não seria uma espécie de chefe ou supervisora. Definitivamente estava a ser preconceituoso e abandonou os pensamentos que tinha na cabeça. Ela falou.
- Quer mais um saco?
- Não, obrigado. Deixe-me só ver se encontro o multibanco...ah, está aqui! Sabia que o tinha guardado num destes bolsos quando fui pôr gasolina.
Ela passou o cartão na máquina com os mesmos movimentos lentos e cuidadosos e Luís deu por si a marcar os números do seu código pessoal também devagar. Depois de alguns segundos ouviu o barulho característico de impressão e esperou que ela lhe entregasse o recibo e o papel do multibanco. Quando ela esticou o braço para lhos entregar não resistiu e tocou com os seus dedos nos dela. Ficou com medo que ela tivesse reparado, mas ao mesmo desejou que tivesse percebido. Despediu-se de forma nervosa.
- Então boa tarde.
- Boa tarde e esperamos poder vê-lo por cá mais vezes.
O tratamento formal pareceu-lhe desadequado, mas sabia que só o era na sua cabeça. Caminhou para a garagem e leu o recibo que ela lhe tinha dado, procurou um nome impresso no papel e achou um que devia ser o dela, Telma Santos.
Luís passou a ser um cliente assíduo do hipermercado. Todos os dias ao fim da tarde passava por lá para comprar o jantar e tentava pagar na caixa onde ela estava. Ao fim de alguns dias exibiu com orgulho o seu cartão de desconto e a partir daí passaram a trocar algumas palavras. Eram conversas rápidas, mas todos os dias falavam sempre mais um pouco do que no anterior, àquela hora havia pouca gente e podiam sempre perder algum tempo a falar.
Três semanas depois de a ter conhecido convidou-a a para jantar. Foi uma situação muito estranha e a meio pensou se não estaria a avançar cedo demais, mas ela aceitou sem ter de pensar muito. Impôs apenas uma condição, o jantar seria em casa dela no fim-de-semana seguinte. Ele aceitou.
Foi com algum nervosismo que Luís saiu do carro e tocou à campainha do prédio com o número vinte e três. Não era costume fazer convites daqueles a pessoas que mal conhecia e estava um pouco ansioso com o desenrolar da noite. No intercomunicador ouviu uma voz conhecida.
- Sim?
- Telma? Sou eu, o Luís.
- Sobe.
Entrou no prédio e sentiu o cheiro de comida. Subiu as escadas até ao segundo andar e quando se preparava para bater à porta ouviu o barulho de uma chave a rodar na fechadura. Telma abriu a porta sorridente.
- Olá, entra. Tiveste dificuldade em dar com a rua?
- Não, não conhecia a zona, mas as tuas indicações estavam perfeitas.
- Pois, suponho que não seja uma zona muito frequentada pelos ricos.
Quando ia argumentar percebeu pela cara dela que estava a brincar. De qualquer forma sentiu-se desconfortável com o comentário, sabia que haviam diferenças entre eles e não tinha conseguido resolver bem esse problema na sua cabeça. Um problema que o incomodava mais por achar que não era boa pessoa por pensar naquelas coisas, do que por sentir que isso tinha realmente alguma importância.
Ela interrompeu os seus pensamentos.
- Então, vais ficar aí à entrada?
- Desculpa, eu às vezes tenho destas coisas, não ligues. Toma, isto é para ti, não sei se gostas.
Telma agarrou no ramo de flores e cheirou-as demoradamente.
- Há muito tempo que não me ofereciam flores.
- Não é nada de especial, também trouxe vinho.
- Mas tu és maluco? É só um jantar simples, não era para trazeres nada, obrigada.
Entraram e observou a casa, era muito pequena mas muito acolhedora e sentiu-se muito bem lá dentro. As paredes estavam cheios de desenhos e todos os cantos estavam preenchidos por algum objecto, como se cada centímetro de espaço tivesse sido cuidadosamente planeado. Ela percebeu.
- Está um pouco cheia eu sei, mas tenho alguns problemas em me livrar das coisa de que gosto.
- Dá para perceber. E os desenhos?
- São meus.
- A sério?
- Sim, mas são só brincadeiras, não são verdadeiras obras de arte. É como te disse, não me consigo livrar das coisas.
Sentaram-se no sofá da pequena sala.
- Queres beber alguma coisa?
- Bebo um copo de água, não quero começar já com o vinho.
Ela sorriu com a piada dele e saiu da sala enquanto Luís continuava a observar aquele novo mundo onde tinha entrado. Por cima de uma televisão cinzenta estavam várias prateleiras cheias de CD’s e não resistiu a levantar-se e dar uma olhada. Quando Telma entrou com a água não conseguiu esconder o seu espanto.
- Desculpa, estava aqui a olhar para a tua colecção de CD’s, confesso que estou admirado.
- Porquê?
- Eu julgava que era um apreciador de música, mas quando olho para tudo o que tens aqui, sinto que não sei assim tanto sobre o assunto.
- É uma das minhas paixões, juntamente com o cinema e com os desenhos, mas não tenho dinheiro para tudo. Só que não respondeste à minha pergunta.
- Que pergunta?
- Porque é que ficaste admirado com a minha colecção de CD’s?
Falou sem pensar.
- Não achei que uma pessoa como tu...
Percebeu tarde demais o que estava a dizer.
- Desculpa, não era isto que eu queria...eu não queria dizer o que disse.
- Não? Eu acho que tu disseste exactamente o que querias. É difícil esqueceres, não é?
- Esquecer o quê?
Sabia bem no que é que ela estava a falar e não insistiu na pergunta quando percebeu que ela não ia responder. De repente sentiu-se muito desconfortável e apeteceu-lhe sair daquela sala pequena. Apeteceu-lhe fugir e esquecer tudo, esquecer o que dissera, esquecer quem era, apenas meter-se no seu carro e fingir que nada tinha acontecido. Mas no meio de todos este pensamentos confusos olhou para ela e reparou que não estava com um ar zangado. Acalmou-se.
- Desculpa, não era esta a noite que eu tinha planeado quando te convidei para jantar.
- Eu sei.
- Olha, eu não sou má pessoa e não acho que sou superior a ninguém, só que...eu não sei bem explicar, há coisas que são automáticas...eu...
Não foi capaz de continuar e sentou-se outra vez no sofá. Ela sentou-se a seu lado e falou calmamente.
- O teu mundo é muito diferente deste, não é?
- É...mas...
- Diz.
- É, mas não quero que seja, percebes?
Ela sorriu de uma maneira que o fez tremer.
- Eu sei.
- Sabes? Mas...então não estás zangada?
- Nunca disse que estava.
- Mas tu confrontaste-me. E com algo que eu próprio não consigo admitir para mim mesmo a maior parte das vezes.
Ela pousou as suas mãos nas dele e ficou um segundo a olhar para ele.
- Achei só que devíamos resolver este problema o mais cedo possível.
- Mas então tu...tu já sabias?
- Desde o momento em que me tocaste na mão, na primeira vez em que nos vimos.
Repetiu dentro da sua cabeça o que ela tinha acabado de dizer. Parecia que estava a acordar de um sonho, como se nas últimas semanas tivesse estado nalguma espécie de transe do qual começava a sair. Percebeu que não tinha pensado muito no que tinha andado a fazer, mas que de repente tudo fazia sentido.
Perguntou-lhe timidamente.
- E achas que já resolvemos o problema?
Ela não respondeu e beijou-o nos lábios.
- Luís, acho que gosto de ti.
quarta-feira, janeiro 25, 2006
quinta-feira, janeiro 19, 2006
Diferenças
Tarde
Quanto mais olhava para a parede mais tinha a certeza do impossível, aquela não era a sua sombra. Passou as mãos pelos contornos que deviam ser seus e reparou nas pequenas diferenças, o cabelo ligeiramente mais comprido, os ombros mais largos, a camisola de gola alta. Deitou-se sobre a cama por fazer e recordou o dia anterior.
A estação
Ao entrar no átrio principal do edifício olhou para os monitores com as horas dos comboios e percebeu que dificilmente conseguiria apanhar o das oito. Tinha escolhido o pior dia do ano para chegar atrasado, o dia do aniversário de Teresa, que lhe suplicara para não a desiludir mais uma vez. Agora corria por entre as pessoas derrubando tudo à sua frente e rezava para que o comboio se atrasasse pelo menos alguns minutos, era tudo o que precisava.
Saltou por cima de uma mochila esquecida no chão e viu-o pela primeira vez, reparou nele e o tempo pareceu correr mais devagar, como se numa fracção de segundo tivesse conseguido observar aquela pessoa durante horas, como se estivesse a olhar para um quadro numa parede de um museu e se esquecesse de tudo. Não pôde evitar a colisão e percebeu logo que tinha perdido o comboio.
Voltou a si com o barulho da sirene da ambulância. A seu lado um jovem bombeiro sorria para ele e explicava-lhe que tinha estado desmaiado durante algum tempo, mas que estivesse descansado pois não devia ser nada de especial, a ida ao hospital era só por precaução. Lembrou-se de Teresa e fechou os olhos, tinha falhado mais uma vez.
Em casa
Entrou em casa e desejou estar sozinho, queria poder pedir desculpas sem os olhares de toda a família. Ficou no corredor a ouvir as conversas e os risos das crianças que corriam umas atrás das outras e de repente deu por si a pensar que não gostava do quadro que estava pendurado por cima do móvel onde costumava pôr as chaves. Alguém o chamou de volta à realidade.
Em menos de dez segundos estava rodeado de perguntas e olhares. O penso na testa era o principal motivo de curiosidade e respondia devagar a todas a perguntas. Conseguia ver a cara triste de Teresa ao fundo da sala, sabia o que ela estava a pensar e sabia que não se ia deixar impressionar por nódoas negras e roupas rasgadas, as feridas entre eles eram bem maiores.
No quarto
Antes da festa acabar sentiu-se muito cansado e subiu para o seu quarto, tomou um banho e sentou-se na cama. Não ligou a televisão e ficou a ouvir Teresa no andar de baixo a arrumar a casa. Queria ir ajudá-la mas sabia que não ia ser bem recebido e ficou à espera de uma conversa que não queria ter.
Quando ela entrou no quarto estava quase a adormecer. Sentou-se mais direito e tentou escolher as palavras para falar, mas estava cansado e não sabia mais o que dizer ao fim de tantos anos, ficou calado. Ela fez um ar estranho, como se esperasse uma reacção diferente dele e perguntou-lhe se tinha dores. Respondeu que sim e ela disse que talvez fosse melhor deixarem a conversa para o dia seguinte.
Apagaram a luz e ficou a pensar no dia que tinha tido, pensou nos minutos que perdera no trabalho, no metro que não tinha apanhado por um segundo, no homem com quem tinha chocado na estação. A seu lado Teresa dormia, aproximou-se dela e sentiu o cheiro do hidratante que costumava pôr antes de se deitar, sempre gostara daquele perfume e tinha a sensação que não o sentia há muito tempo. Sem pensar aproximou-se mais e abraçou-a, sentiu o seu corpo e adormeceu.
Manhã
Acordou com o sol na cara e por um momento não se recordou do dia anterior, deixou-se ficar na cama de forma preguiçosa até que uma voz o chamou e lembrou-se de tudo o que tinha acontecido. Teresa entrou no quarto com um enorme sorriso na cara e disse-lhe que o pequeno-almoço estava pronto. Perguntou timidamente se não deviam conversar, mas ela sorriu outra vez e saiu do quarto sem responder.
Enquanto tomava banho sentiu-se estranho, como se o mundo à sua volta estivesse diferente. Não conseguia deixar de sentir uma sensação de que tudo era novo, como se estivesse num hotel numa das suas viagens de trabalho. Olhava para os lados e conseguia reconhecer os seus objectos, mas ao mesmo tempo parecia que estavam todos fora do seu sitio. Era algo que não conseguia compreender e deixou-se estar debaixo da água quente que corria do chuveiro.
Voltou para o quarto e abriu uma porta do armário para escolher algo para vestir. Olhou para as camisas penduradas e não teve vontade de vestir nenhuma, eram quase todas iguais e apetecia-lhe vestir algo diferente. Abriu algumas gavetas e foi passando por entre os dedos as camisolas dobradas no seu interior. Não sabia porquê, mas pareciam-lhe todas estranhas, como se não fossem dele, como se tivesse acordado numa casa que não era a sua e vasculhasse nas roupas de outra pessoa.
No fundo de uma gaveta encontrou uma camisola da qual não se lembrava. Nunca tinha gostado daquele tipo de golas que lhe apertavam o pescoço e perguntou a si mesmo como é que ela tinha ido ali parar. Era verde e à frente tinha uma figura estampada em tons de amarelo de um gosto muito duvidoso que o fez sorrir. Não resistiu e vestiu-a.
Desceu as escadas e sentou-se ao lado de Teresa que lhe perguntou que camisola era aquela. Tentou desviar o assunto, mas ela mal conseguia conter o riso, um riso que o fez lembrar-se do dia em que a conheceu. Não aguentou e riu-se com ela.
Quanto mais olhava para a parede mais tinha a certeza do impossível, aquela não era a sua sombra. Passou as mãos pelos contornos que deviam ser seus e reparou nas pequenas diferenças, o cabelo ligeiramente mais comprido, os ombros mais largos, a camisola de gola alta. Deitou-se sobre a cama por fazer e recordou o dia anterior.
A estação
Ao entrar no átrio principal do edifício olhou para os monitores com as horas dos comboios e percebeu que dificilmente conseguiria apanhar o das oito. Tinha escolhido o pior dia do ano para chegar atrasado, o dia do aniversário de Teresa, que lhe suplicara para não a desiludir mais uma vez. Agora corria por entre as pessoas derrubando tudo à sua frente e rezava para que o comboio se atrasasse pelo menos alguns minutos, era tudo o que precisava.
Saltou por cima de uma mochila esquecida no chão e viu-o pela primeira vez, reparou nele e o tempo pareceu correr mais devagar, como se numa fracção de segundo tivesse conseguido observar aquela pessoa durante horas, como se estivesse a olhar para um quadro numa parede de um museu e se esquecesse de tudo. Não pôde evitar a colisão e percebeu logo que tinha perdido o comboio.
Voltou a si com o barulho da sirene da ambulância. A seu lado um jovem bombeiro sorria para ele e explicava-lhe que tinha estado desmaiado durante algum tempo, mas que estivesse descansado pois não devia ser nada de especial, a ida ao hospital era só por precaução. Lembrou-se de Teresa e fechou os olhos, tinha falhado mais uma vez.
Em casa
Entrou em casa e desejou estar sozinho, queria poder pedir desculpas sem os olhares de toda a família. Ficou no corredor a ouvir as conversas e os risos das crianças que corriam umas atrás das outras e de repente deu por si a pensar que não gostava do quadro que estava pendurado por cima do móvel onde costumava pôr as chaves. Alguém o chamou de volta à realidade.
Em menos de dez segundos estava rodeado de perguntas e olhares. O penso na testa era o principal motivo de curiosidade e respondia devagar a todas a perguntas. Conseguia ver a cara triste de Teresa ao fundo da sala, sabia o que ela estava a pensar e sabia que não se ia deixar impressionar por nódoas negras e roupas rasgadas, as feridas entre eles eram bem maiores.
No quarto
Antes da festa acabar sentiu-se muito cansado e subiu para o seu quarto, tomou um banho e sentou-se na cama. Não ligou a televisão e ficou a ouvir Teresa no andar de baixo a arrumar a casa. Queria ir ajudá-la mas sabia que não ia ser bem recebido e ficou à espera de uma conversa que não queria ter.
Quando ela entrou no quarto estava quase a adormecer. Sentou-se mais direito e tentou escolher as palavras para falar, mas estava cansado e não sabia mais o que dizer ao fim de tantos anos, ficou calado. Ela fez um ar estranho, como se esperasse uma reacção diferente dele e perguntou-lhe se tinha dores. Respondeu que sim e ela disse que talvez fosse melhor deixarem a conversa para o dia seguinte.
Apagaram a luz e ficou a pensar no dia que tinha tido, pensou nos minutos que perdera no trabalho, no metro que não tinha apanhado por um segundo, no homem com quem tinha chocado na estação. A seu lado Teresa dormia, aproximou-se dela e sentiu o cheiro do hidratante que costumava pôr antes de se deitar, sempre gostara daquele perfume e tinha a sensação que não o sentia há muito tempo. Sem pensar aproximou-se mais e abraçou-a, sentiu o seu corpo e adormeceu.
Manhã
Acordou com o sol na cara e por um momento não se recordou do dia anterior, deixou-se ficar na cama de forma preguiçosa até que uma voz o chamou e lembrou-se de tudo o que tinha acontecido. Teresa entrou no quarto com um enorme sorriso na cara e disse-lhe que o pequeno-almoço estava pronto. Perguntou timidamente se não deviam conversar, mas ela sorriu outra vez e saiu do quarto sem responder.
Enquanto tomava banho sentiu-se estranho, como se o mundo à sua volta estivesse diferente. Não conseguia deixar de sentir uma sensação de que tudo era novo, como se estivesse num hotel numa das suas viagens de trabalho. Olhava para os lados e conseguia reconhecer os seus objectos, mas ao mesmo tempo parecia que estavam todos fora do seu sitio. Era algo que não conseguia compreender e deixou-se estar debaixo da água quente que corria do chuveiro.
Voltou para o quarto e abriu uma porta do armário para escolher algo para vestir. Olhou para as camisas penduradas e não teve vontade de vestir nenhuma, eram quase todas iguais e apetecia-lhe vestir algo diferente. Abriu algumas gavetas e foi passando por entre os dedos as camisolas dobradas no seu interior. Não sabia porquê, mas pareciam-lhe todas estranhas, como se não fossem dele, como se tivesse acordado numa casa que não era a sua e vasculhasse nas roupas de outra pessoa.
No fundo de uma gaveta encontrou uma camisola da qual não se lembrava. Nunca tinha gostado daquele tipo de golas que lhe apertavam o pescoço e perguntou a si mesmo como é que ela tinha ido ali parar. Era verde e à frente tinha uma figura estampada em tons de amarelo de um gosto muito duvidoso que o fez sorrir. Não resistiu e vestiu-a.
Desceu as escadas e sentou-se ao lado de Teresa que lhe perguntou que camisola era aquela. Tentou desviar o assunto, mas ela mal conseguia conter o riso, um riso que o fez lembrar-se do dia em que a conheceu. Não aguentou e riu-se com ela.
domingo, janeiro 08, 2006
O Táxi
Na cidade
Eram onze da noite e João conduzia o táxi devagar pelas ruas de Lisboa. Estava calor e trazia a janela aberta para sentir o vento na cara, àquela hora não se sentia o ar poluído da cidade e às vezes o cheiro era quase agradável. Gostava destas noites com pouco trabalho em que podia conduzir sem destino pelas ruas vazias e não se preocupava com o dinheiro que não estava a ganhar. Era uma pessoa simples e não precisava de muito para ser feliz, apenas alguns pequenos prazeres eram suficientes para que tivesse uma vida com poucas preocupações.
No dia anterior tinham-lhe ligado de manhã para ir buscar um carro à oficina com o qual deveria andar durante a semana e recordava agora o momento em que o tinha ido buscar. Era normal trocar de carro e normalmente não dava muita importância a estas mudanças, mas tinha ficado espantado com o que o esperava desta vez, um Mercedes com mais de vinte anos ainda pintado com as antigas cores dos táxis da cidade.
O carro estava em excelentes condições e quase que era difícil acreditar que tinha tanto tempo de serviço. O rapaz que lho entregara tinha lhe contado que pertencera a um taxista que se tinha reformado uns meses antes e que tinha sido o único a conduzi-lo durante duas décadas. O amor do senhor pelo carro era conhecido entre os seus amigos e ao que parecia tinha feito algumas exigências antes de o entregar. João só não sabia por que é que o tinham escolhido a ele para conduzir aquela antiguidade, não era conhecido por ser especialmente cuidadoso com os carros e sentia-se algo nervoso com a responsabilidade.
Na avenida
Quando descia a Avenida da Liberdade reparou numa pessoa parada no passeio, não era um sitio comum para se mandar parar um táxi, ainda mais àquela hora, mas abrandou a velocidade. Viu uma mão no ar e pensou que não devia parar ali, mas como o semáforo à sua frente ficou vermelho decidiu parar, uma mulher entrou pela porta traseira e sentou-se sem dizer nada. Ele falou.
- Boa noite, para onde deseja ir?
A mulher ficou calada sem olhar para ele.
- Peço desculpa, mas este é um sitio mau para estar parado, pode-me dizer para onde deseja ir?
Ela olhou para ele e falou.
- Desculpe, queria ir para Belém.
Arrancaram e João pensou se devia ou não dizer alguma coisa, nem sempre fazia conversa com os passageiros e tinha a sensação que a mulher não devia ser muito comunicativa.
- Sabe, quando quiser apanhar um táxi aqui devia ir para as ruas laterais, ali atrás é muito difícil alguém parar.
Ela voltou a demorar a responder.
- Eu não estava à espera de um táxi, na verdade não sei bem porque é que o mandei parar, acho que estava cansada e quando o vi achei que talvez fosse boa ideia dar uma volta de carro.
- Dar uma volta de carro? Mas não disse que queria ir para Belém?
- Tinha que dizer algum sitio não era? Mas na verdade não me importo muito para onde vá.
Ficou um minuto sem dizer nada. Não era a primeira vez que lhe aparecia uma pessoa estranha, mas não sabia bem o que dizer.
- Mas está tudo bem consigo? Eu...desculpe, não queria estar a ser intrometido.
- Não faz mal, compreendo que esta deva ser uma situação estranha para si, mas não se assuste, eu tenho dinheiro para pagar.
Não tinha pensado em dinheiro, raramente pensava. Ficou calado enquanto continuava a conduzir pela baixa da cidade, as ruas estavam iluminadas pelas luzes de Natal que ainda não tinham sido retiradas, uma das razões porque se tinha dirigido para aquela zona da cidade.
Esticou o braço e desligou o taxímetro.
- O que está a fazer?
A voz da mulher tinha se alterado e parecia algo assustada.
- A senhora não quer ir para lado nenhum e eu também andava um pouco à deriva, por isso não acho muito justo cobrar-lhe dinheiro.
- Como? Não está a falar a sério pois não?
- Estou, assim pelo menos tenho companhia.
Ela não respondeu e ele continuou a guiar sem destino.
Passou algum tempo sem que algum dos dois falasse. Ele olhou pelo retrovisor quando passaram por um candeeiro e viu dois enormes olhos que o observavam, perguntou a si mesmo no que estaria a pensar, mas não teve coragem de perguntar. Em vez disso fez-lhe uma proposta.
- Importa-se que vá até Belém? Afinal era o nosso primeiro destino.
- Não, mas porquê?
- Lembrei-me que podíamos ir comer uns Pastéis de Belém.
Ficou um pouco atrapalhado com o convite que tinha acabado de fazer e tentou corrigir.
- Não leve a mal, mas é algo que costumo fazer quando acabo o serviço, vou comprar Pastéis de Belém e vou até ao pé do rio.
Sentia-se cada vez pior, mas continuou.
- Mas pode ficar no carro se quiser, ou podemos não ir...é como desejar.
Pelo espelho percebeu que ela estava a sorrir.
- Não, não mude os seus planos, podemos ir até Belém. Mas a estas horas não vai estar tudo fechado?
- Eu conheço umas pessoas lá, acho que ainda consigo arranjar alguma coisa.
Ela acenou com a cabeça e recostou-se no banco.
No rio
Voltou para o carro a correr, orgulhoso de ter conseguido os bolos. Entrou no táxi e exibiu-os com ar de rapaz pequeno.
- Estou espantada, isto é que é ter conhecimentos.
A voz dela era diferente, menos triste, menos pesada e ele sentiu-se mais à vontade.
- Então podemos ir? Há um sitio aqui perto onde costumo ir e onde nos podemos sentar a comer enquanto olhamos as luzes da ponte.
- Estou a ver que faz isto muitas vezes.
- Faço, mas sempre sozinho.
Quando parou o carro saiu para lhe abrir a porta, mas ela antecipou-se. Olhou pela primeira vez bem para a sua cara e reparou que era mais nova do que julgava, era também muito bonita.
- É ali que eu me costumo sentar, mas se quiser podemos ir para outro lado.
- Não, por mim está bem.
Sentaram-se e durante uns minuto instalou-se um silêncio incomodativo. João queria dizer alguma coisa, mas não conseguia pensar em nada. Ela falou.
- Posso lhe fazer uma pergunta?
- Claro.
- Que carro é este que você guia?
- Porquê?
- Porque é o tipo de carro que esperava ver conduzido por alguém mais velho. Além disso está tão bem cuidado, parece ter sido pouco usado, mas desconfio que deve ter muitos quilómetros.
- Sim, tem muitos.
- E tem as cores antigas, tenho muita pena que as tenham mudado, acho que a cidade perdeu um pouco dela nessa altura.
- Eu também gostava mais das outras cores, acho que todos gostavam. Eu nunca tinha guiado nenhum destes.
- Mas não respondeu à minha pergunta, como é que ele veio parar às suas mãos?
João lembrou-se outra vez da história que lhe tinham contado.
- Não tenho assim uma justificação especial para isso, eu só faço o que me mandam, mas confesso que também estranhei quando o fui buscar.
Ficou pensativo.
- E sabe que mais? Agora que fala no assunto, acho que sem me dar conta tenho andado o dia todo a pensar nisto.
- Como assim?
- Isto vai parecer estranho, mas este carro...como é que hei-de explicar? É um carro que se sente, percebe? Não sei se estou a fazer algum sentido.
- Está, não sei bem como, mas acho que sei exactamente o que está a tentar dizer-me. Sabe de quem ele era? Devia ser de alguém que gostava muito dele.
- Sim, disseram-me que sim.
Ficaram uns minutos mais sem falar, ouvia-se o barulho da água perto deles e a noite começava a ficar mais fria.
- Sabe? Hoje foi um dia estranho, tenho andado quase sempre sozinho e começo a pensar se não terá sido por distracção minha que tive menos clientes.
- Pelo menos reparou em mim.
- Sim, em si reparei.
- Ainda bem que o fez.
Ela fez uma pausa.
- O meu dia também não foi muito normal, como já deve ter notado.
- Imagino que não...apetece-lhe falar sobre isso?
- Não, não me apetece. Para falar verdade já não me parece tão importante como há umas horas atrás.
Ela sorriu antes de continuar.
- Sabe? Gosto deste sitio, obrigado por me ter convidado para vir aqui.
- Não tem de agradecer, não é propriamente um lugar secreto.
- Eu sei, mas obrigado na mesma.
Os carros passavam ao longe na ponte e João pensava nas pessoas que seguiam dentro deles, pensava em todas aquelas vidas diferentes, vidas cheias de problemas, cheias de alegrias, pensava que se cruzava todos os dias com milhares de pessoas e que não sabia nada sobre elas. Então virou-se para ela e falou.
- Queria dizer-lhe uma coisa.
- Estou a ouvir.
- Eu também acho que foi bom ter parado, foi muito bom mesmo.
Ela olhou para ele de forma doce, aproximou-se e deu-lhe um beijo na face.
- E se fossemos dar uma volta pela cidade? Não tens mais sítios que me gostasses de mostrar?
Ele gostou que ela o tratasse por tu e respondeu.
- Tenho mais um ou dois de que gosto muito.
- E não me queres levar até lá?
- Sim, quero.
Dirigiram-se para o carro e João apressou-se para lhe abrir a porta da frente, desta vez conseguiu. Antes de entrar inspirou fundo para sentir o ar da noite e olhou para o rio e para o sitio onde tinham estado, tudo estava diferente.
Eram onze da noite e João conduzia o táxi devagar pelas ruas de Lisboa. Estava calor e trazia a janela aberta para sentir o vento na cara, àquela hora não se sentia o ar poluído da cidade e às vezes o cheiro era quase agradável. Gostava destas noites com pouco trabalho em que podia conduzir sem destino pelas ruas vazias e não se preocupava com o dinheiro que não estava a ganhar. Era uma pessoa simples e não precisava de muito para ser feliz, apenas alguns pequenos prazeres eram suficientes para que tivesse uma vida com poucas preocupações.
No dia anterior tinham-lhe ligado de manhã para ir buscar um carro à oficina com o qual deveria andar durante a semana e recordava agora o momento em que o tinha ido buscar. Era normal trocar de carro e normalmente não dava muita importância a estas mudanças, mas tinha ficado espantado com o que o esperava desta vez, um Mercedes com mais de vinte anos ainda pintado com as antigas cores dos táxis da cidade.
O carro estava em excelentes condições e quase que era difícil acreditar que tinha tanto tempo de serviço. O rapaz que lho entregara tinha lhe contado que pertencera a um taxista que se tinha reformado uns meses antes e que tinha sido o único a conduzi-lo durante duas décadas. O amor do senhor pelo carro era conhecido entre os seus amigos e ao que parecia tinha feito algumas exigências antes de o entregar. João só não sabia por que é que o tinham escolhido a ele para conduzir aquela antiguidade, não era conhecido por ser especialmente cuidadoso com os carros e sentia-se algo nervoso com a responsabilidade.
Na avenida
Quando descia a Avenida da Liberdade reparou numa pessoa parada no passeio, não era um sitio comum para se mandar parar um táxi, ainda mais àquela hora, mas abrandou a velocidade. Viu uma mão no ar e pensou que não devia parar ali, mas como o semáforo à sua frente ficou vermelho decidiu parar, uma mulher entrou pela porta traseira e sentou-se sem dizer nada. Ele falou.
- Boa noite, para onde deseja ir?
A mulher ficou calada sem olhar para ele.
- Peço desculpa, mas este é um sitio mau para estar parado, pode-me dizer para onde deseja ir?
Ela olhou para ele e falou.
- Desculpe, queria ir para Belém.
Arrancaram e João pensou se devia ou não dizer alguma coisa, nem sempre fazia conversa com os passageiros e tinha a sensação que a mulher não devia ser muito comunicativa.
- Sabe, quando quiser apanhar um táxi aqui devia ir para as ruas laterais, ali atrás é muito difícil alguém parar.
Ela voltou a demorar a responder.
- Eu não estava à espera de um táxi, na verdade não sei bem porque é que o mandei parar, acho que estava cansada e quando o vi achei que talvez fosse boa ideia dar uma volta de carro.
- Dar uma volta de carro? Mas não disse que queria ir para Belém?
- Tinha que dizer algum sitio não era? Mas na verdade não me importo muito para onde vá.
Ficou um minuto sem dizer nada. Não era a primeira vez que lhe aparecia uma pessoa estranha, mas não sabia bem o que dizer.
- Mas está tudo bem consigo? Eu...desculpe, não queria estar a ser intrometido.
- Não faz mal, compreendo que esta deva ser uma situação estranha para si, mas não se assuste, eu tenho dinheiro para pagar.
Não tinha pensado em dinheiro, raramente pensava. Ficou calado enquanto continuava a conduzir pela baixa da cidade, as ruas estavam iluminadas pelas luzes de Natal que ainda não tinham sido retiradas, uma das razões porque se tinha dirigido para aquela zona da cidade.
Esticou o braço e desligou o taxímetro.
- O que está a fazer?
A voz da mulher tinha se alterado e parecia algo assustada.
- A senhora não quer ir para lado nenhum e eu também andava um pouco à deriva, por isso não acho muito justo cobrar-lhe dinheiro.
- Como? Não está a falar a sério pois não?
- Estou, assim pelo menos tenho companhia.
Ela não respondeu e ele continuou a guiar sem destino.
Passou algum tempo sem que algum dos dois falasse. Ele olhou pelo retrovisor quando passaram por um candeeiro e viu dois enormes olhos que o observavam, perguntou a si mesmo no que estaria a pensar, mas não teve coragem de perguntar. Em vez disso fez-lhe uma proposta.
- Importa-se que vá até Belém? Afinal era o nosso primeiro destino.
- Não, mas porquê?
- Lembrei-me que podíamos ir comer uns Pastéis de Belém.
Ficou um pouco atrapalhado com o convite que tinha acabado de fazer e tentou corrigir.
- Não leve a mal, mas é algo que costumo fazer quando acabo o serviço, vou comprar Pastéis de Belém e vou até ao pé do rio.
Sentia-se cada vez pior, mas continuou.
- Mas pode ficar no carro se quiser, ou podemos não ir...é como desejar.
Pelo espelho percebeu que ela estava a sorrir.
- Não, não mude os seus planos, podemos ir até Belém. Mas a estas horas não vai estar tudo fechado?
- Eu conheço umas pessoas lá, acho que ainda consigo arranjar alguma coisa.
Ela acenou com a cabeça e recostou-se no banco.
No rio
Voltou para o carro a correr, orgulhoso de ter conseguido os bolos. Entrou no táxi e exibiu-os com ar de rapaz pequeno.
- Estou espantada, isto é que é ter conhecimentos.
A voz dela era diferente, menos triste, menos pesada e ele sentiu-se mais à vontade.
- Então podemos ir? Há um sitio aqui perto onde costumo ir e onde nos podemos sentar a comer enquanto olhamos as luzes da ponte.
- Estou a ver que faz isto muitas vezes.
- Faço, mas sempre sozinho.
Quando parou o carro saiu para lhe abrir a porta, mas ela antecipou-se. Olhou pela primeira vez bem para a sua cara e reparou que era mais nova do que julgava, era também muito bonita.
- É ali que eu me costumo sentar, mas se quiser podemos ir para outro lado.
- Não, por mim está bem.
Sentaram-se e durante uns minuto instalou-se um silêncio incomodativo. João queria dizer alguma coisa, mas não conseguia pensar em nada. Ela falou.
- Posso lhe fazer uma pergunta?
- Claro.
- Que carro é este que você guia?
- Porquê?
- Porque é o tipo de carro que esperava ver conduzido por alguém mais velho. Além disso está tão bem cuidado, parece ter sido pouco usado, mas desconfio que deve ter muitos quilómetros.
- Sim, tem muitos.
- E tem as cores antigas, tenho muita pena que as tenham mudado, acho que a cidade perdeu um pouco dela nessa altura.
- Eu também gostava mais das outras cores, acho que todos gostavam. Eu nunca tinha guiado nenhum destes.
- Mas não respondeu à minha pergunta, como é que ele veio parar às suas mãos?
João lembrou-se outra vez da história que lhe tinham contado.
- Não tenho assim uma justificação especial para isso, eu só faço o que me mandam, mas confesso que também estranhei quando o fui buscar.
Ficou pensativo.
- E sabe que mais? Agora que fala no assunto, acho que sem me dar conta tenho andado o dia todo a pensar nisto.
- Como assim?
- Isto vai parecer estranho, mas este carro...como é que hei-de explicar? É um carro que se sente, percebe? Não sei se estou a fazer algum sentido.
- Está, não sei bem como, mas acho que sei exactamente o que está a tentar dizer-me. Sabe de quem ele era? Devia ser de alguém que gostava muito dele.
- Sim, disseram-me que sim.
Ficaram uns minutos mais sem falar, ouvia-se o barulho da água perto deles e a noite começava a ficar mais fria.
- Sabe? Hoje foi um dia estranho, tenho andado quase sempre sozinho e começo a pensar se não terá sido por distracção minha que tive menos clientes.
- Pelo menos reparou em mim.
- Sim, em si reparei.
- Ainda bem que o fez.
Ela fez uma pausa.
- O meu dia também não foi muito normal, como já deve ter notado.
- Imagino que não...apetece-lhe falar sobre isso?
- Não, não me apetece. Para falar verdade já não me parece tão importante como há umas horas atrás.
Ela sorriu antes de continuar.
- Sabe? Gosto deste sitio, obrigado por me ter convidado para vir aqui.
- Não tem de agradecer, não é propriamente um lugar secreto.
- Eu sei, mas obrigado na mesma.
Os carros passavam ao longe na ponte e João pensava nas pessoas que seguiam dentro deles, pensava em todas aquelas vidas diferentes, vidas cheias de problemas, cheias de alegrias, pensava que se cruzava todos os dias com milhares de pessoas e que não sabia nada sobre elas. Então virou-se para ela e falou.
- Queria dizer-lhe uma coisa.
- Estou a ouvir.
- Eu também acho que foi bom ter parado, foi muito bom mesmo.
Ela olhou para ele de forma doce, aproximou-se e deu-lhe um beijo na face.
- E se fossemos dar uma volta pela cidade? Não tens mais sítios que me gostasses de mostrar?
Ele gostou que ela o tratasse por tu e respondeu.
- Tenho mais um ou dois de que gosto muito.
- E não me queres levar até lá?
- Sim, quero.
Dirigiram-se para o carro e João apressou-se para lhe abrir a porta da frente, desta vez conseguiu. Antes de entrar inspirou fundo para sentir o ar da noite e olhou para o rio e para o sitio onde tinham estado, tudo estava diferente.
segunda-feira, janeiro 02, 2006
Alberto, o Homem-Estátua
Alberto estava há duas horas parado e doíam-lhe os pés. Sabia que não devia ter comprado sapatos novos, mas não resistira. Andava a namorar a mesma montra há três semanas e achara que também tinha direito a comprar algo para ele. Agora amaldiçoava a hora em que tinha tomado a decisão de gastar tanto dinheiro nuns sapatos que o magoavam, especialmente quando tinha de estar tantas horas de pé. Era um homem-estátua, uma figura branca que fixava o infinito durante horas sem mexer um músculo, sem deixar perceber que debaixo da tinta que lhe cobria a cara e a roupa existia uma pessoa normal.
Naquela manhã de Janeiro tinha saído atrasado de casa e tinha pintado a cara no metro. À sua volta todos olhavam a transformação e riam enquanto as suas expressões iam ficando escondidas. Um senhor de fato cinzento tinha mesmo chegado a oferecer-lhe uma moeda que recusara. Só depois de estar todo vestido e imóvel podia aceitar alguma coisa, até lá era só alguém a caminho do trabalho, um trabalho invulgar.
O tempo passava devagar e pensava em algo que acontecera duas semanas antes. Como em todos os anos deixara de lado o fato pintado de branco por um dia e tinha se transformado noutra personagem, um músico que tocava músicas de Natal. As pessoas tinham sido generosas nas suas ofertas e mais uma vez tinha sido o dia do ano em que mais dinheiro tinha ganho, o que o levava sempre a pensar se não devia desistir do homem-estátua. Era um pensamento recorrente que abandonava sempre com o argumento de que esta personagem só funcionava durante um dia e que não teria o mesmo sucesso se aparecesse mais vezes.
Mas desta vez tinha acontecido algo diferente, algo que o tinha deixado pensativo e que desde então não lhe saía da cabeça. Tudo se passou ao fim do dia quando já pensava em ir para casa e reparou num rapaz que o observava durante mais tempo do que o normal. Alguém que parecia querer adivinhar o que lhe ia dentro da cabeça, que parecia querer saber quem era. Tentara não olhar muito para ele, mas não pôde deixar de se sentir observado e não conseguiu desligar-se da sensação de estarem a tentar entrar dentro da sua vida. Era tudo muito estranho pois todos os dias era observado por muitas pessoas e não percebia o que é que este rapaz tinha de diferente.
Passado algum tempo reparou que alguém falava com o rapaz, era uma rapariga de feições alegres que tinha a impressão de conhecer. Olhou melhor e confirmou que era a mesma rapariga que costumava passar por ele todos os dias ao fim da tarde. Conhecia bem a sua cara pois ela fazia questão de se pôr bem à frente dos seus olhos, para que ele não tivesse outra hipótese senão olhar também para os seus. Ela costumava sorrir, não sabia se para ver se ele se mexia ou se apenas por simpatia, ele retribuía o sorriso sem mexer os lábios.
Não se tinha passado mais nada, a rapariga e o rapaz tinham conversado um pouco enquanto olhavam para ele e tinham ido embora juntos. Mas não conseguia deixar de pensar que tinham estado a falar sobre ele, a certa altura tinha mesmo chegado a pensar ter ouvido o seu nome, mas não podia ser, pois não havia forma de o saberem. E desde esse dia que passava uma parte do dia a pensar no que tinha acontecido, a pensar se de alguma maneira não fazia parte da vida das pessoas que todos os dias paravam e o observavam. Pensava nas histórias que teriam sido imaginadas sobre ele e sobre a sua vida, em quantos teriam imaginado como é que ele era debaixo da máscara branca, tentando descobrir de quem se esconderia, de quem fugiria.
Alberto não podia deixar de sorrir por dentro enquanto pensava. Era uma pessoa perfeitamente normal que raramente sonhava e era engraçado pensar que os outros podiam sonhar com ele, ele que não era interessante, ele que era a mais banal das pessoas e que passava os dias parado a olhar sempre para o mesmo ponto.
De repente o seu coração começou a bater mais depressa e sentiu-se inundado por tantos sentimentos diferentes que lhe era difícil estar quieto. Era como se tivesse começado a viver depois de anos adormecido. Não percebia o que é que estava a acontecer e lutava para não se mexer, lutava para não ceder ao impulso de saltar de cima do banco onde estava e dançar ao som de uma música que só ele conseguia ouvir. Não resistiu.
Foi uma sensação estranha, como se estivesse a quebrar uma regra imposta por alguém que controlava a sua vida sem o saber. Uma maldição lançada por inveja ou ciúme que o tinha aprisionado durante anos, que não o tinha deixado viver da melhor forma, que não o tinha deixado ser feliz. E mexeu-se, mexeu-se devagar, despertando aos poucos de um sono longo. As pessoas pararam na rua e olharam para os seus movimentos cada vez mais rápidos, parecendo conseguir adivinhar que algo importante se estava a passar, como se soubessem que o homem-estátua não voltaria àquele local, como se tivessem a certeza que estavam a assistir à sua última actuação.
A caminho de casa esfregava as mãos na cara e tentava limpar a tinta branca que usara durante tanto tempo, demasiado tempo. Não sabia como é que pensamentos tão simples tinham provocado tudo o que estava a sentir e pensava que estava a começar algo que não sabia onde o ia levar, mas não ia resistir. Parou a observar a cidade e na sua cabeça tinha apenas uma imagem, a de um rapaz e de uma rapariga a passearem de mãos dadas...
Naquela manhã de Janeiro tinha saído atrasado de casa e tinha pintado a cara no metro. À sua volta todos olhavam a transformação e riam enquanto as suas expressões iam ficando escondidas. Um senhor de fato cinzento tinha mesmo chegado a oferecer-lhe uma moeda que recusara. Só depois de estar todo vestido e imóvel podia aceitar alguma coisa, até lá era só alguém a caminho do trabalho, um trabalho invulgar.
O tempo passava devagar e pensava em algo que acontecera duas semanas antes. Como em todos os anos deixara de lado o fato pintado de branco por um dia e tinha se transformado noutra personagem, um músico que tocava músicas de Natal. As pessoas tinham sido generosas nas suas ofertas e mais uma vez tinha sido o dia do ano em que mais dinheiro tinha ganho, o que o levava sempre a pensar se não devia desistir do homem-estátua. Era um pensamento recorrente que abandonava sempre com o argumento de que esta personagem só funcionava durante um dia e que não teria o mesmo sucesso se aparecesse mais vezes.
Mas desta vez tinha acontecido algo diferente, algo que o tinha deixado pensativo e que desde então não lhe saía da cabeça. Tudo se passou ao fim do dia quando já pensava em ir para casa e reparou num rapaz que o observava durante mais tempo do que o normal. Alguém que parecia querer adivinhar o que lhe ia dentro da cabeça, que parecia querer saber quem era. Tentara não olhar muito para ele, mas não pôde deixar de se sentir observado e não conseguiu desligar-se da sensação de estarem a tentar entrar dentro da sua vida. Era tudo muito estranho pois todos os dias era observado por muitas pessoas e não percebia o que é que este rapaz tinha de diferente.
Passado algum tempo reparou que alguém falava com o rapaz, era uma rapariga de feições alegres que tinha a impressão de conhecer. Olhou melhor e confirmou que era a mesma rapariga que costumava passar por ele todos os dias ao fim da tarde. Conhecia bem a sua cara pois ela fazia questão de se pôr bem à frente dos seus olhos, para que ele não tivesse outra hipótese senão olhar também para os seus. Ela costumava sorrir, não sabia se para ver se ele se mexia ou se apenas por simpatia, ele retribuía o sorriso sem mexer os lábios.
Não se tinha passado mais nada, a rapariga e o rapaz tinham conversado um pouco enquanto olhavam para ele e tinham ido embora juntos. Mas não conseguia deixar de pensar que tinham estado a falar sobre ele, a certa altura tinha mesmo chegado a pensar ter ouvido o seu nome, mas não podia ser, pois não havia forma de o saberem. E desde esse dia que passava uma parte do dia a pensar no que tinha acontecido, a pensar se de alguma maneira não fazia parte da vida das pessoas que todos os dias paravam e o observavam. Pensava nas histórias que teriam sido imaginadas sobre ele e sobre a sua vida, em quantos teriam imaginado como é que ele era debaixo da máscara branca, tentando descobrir de quem se esconderia, de quem fugiria.
Alberto não podia deixar de sorrir por dentro enquanto pensava. Era uma pessoa perfeitamente normal que raramente sonhava e era engraçado pensar que os outros podiam sonhar com ele, ele que não era interessante, ele que era a mais banal das pessoas e que passava os dias parado a olhar sempre para o mesmo ponto.
De repente o seu coração começou a bater mais depressa e sentiu-se inundado por tantos sentimentos diferentes que lhe era difícil estar quieto. Era como se tivesse começado a viver depois de anos adormecido. Não percebia o que é que estava a acontecer e lutava para não se mexer, lutava para não ceder ao impulso de saltar de cima do banco onde estava e dançar ao som de uma música que só ele conseguia ouvir. Não resistiu.
Foi uma sensação estranha, como se estivesse a quebrar uma regra imposta por alguém que controlava a sua vida sem o saber. Uma maldição lançada por inveja ou ciúme que o tinha aprisionado durante anos, que não o tinha deixado viver da melhor forma, que não o tinha deixado ser feliz. E mexeu-se, mexeu-se devagar, despertando aos poucos de um sono longo. As pessoas pararam na rua e olharam para os seus movimentos cada vez mais rápidos, parecendo conseguir adivinhar que algo importante se estava a passar, como se soubessem que o homem-estátua não voltaria àquele local, como se tivessem a certeza que estavam a assistir à sua última actuação.
A caminho de casa esfregava as mãos na cara e tentava limpar a tinta branca que usara durante tanto tempo, demasiado tempo. Não sabia como é que pensamentos tão simples tinham provocado tudo o que estava a sentir e pensava que estava a começar algo que não sabia onde o ia levar, mas não ia resistir. Parou a observar a cidade e na sua cabeça tinha apenas uma imagem, a de um rapaz e de uma rapariga a passearem de mãos dadas...
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