A rapariga era cega. Não era bonita porque parecia amaldiçoar a sorte. João observava-a com a certeza de, uma vez, o poder fazer sem medo. Ao fundo da carruagem ouviu um lamento, um pedido que se repete na voz de todos os cegos. A rapariga parecia não reparar, a expressão dela não se alterou até o cego se afastar e deixar de se ouvir. João sentiu-se mal por ver, por saber mais do que os dois. Para o cego estava mais escuro. Passou pela rapariga e não desconfiou, tocou-lhe na saia mas não tinha como descobrir. Ela sabia que o homem não a via, mas sabia quem ele era, antes de todos os outros. João hesitou em sorrir, a cara dela continuava fechada, sem o deixar perceber o que pensava, o que sentia por outro como ela.
João saiu do metro e respirou o ar da manhã, lembrou-se do sonho que o acordou, que o deixou com uma sensação estranha que não desaparecia. Pelo canto do olho reconheceu um andar, mas continuou a olhar em frente. Esperou, caminhando devagar.
— Olá! — ouviu no momento certo.
— Olá Maria — respondeu. — Mais uma semana, não é?
— Estou a ver que o fim-de-semana não foi grande coisa — disse ela sem olhar para ele. João não disse nada.
— Vinhas a pensar no quê? — perguntou ela.
Não se atreveu a dizer a verdade, talvez esquecesse o sonho durante o dia, talvez se lembrasse dele todos os dias, sempre que passasse por ali, mas guardou a verdade para si.
— Estava a contar as raparigas que já beijei.
— A contar? — perguntou ela com um ar espantado. — Tens cá uma lata João.
— Não é isso — respondeu corado. — Não é nada disso. Foram poucas, foram poucas e isso é uma coisa boa, percebes?
— Desculpa — disse ela. — Mas onde foste buscar isso? Não me parece um típico pensamento matinal.
Não era, tinha pensado no assunto uns dias antes quando tinha descoberto umas fotografias antigas. Apeteceu-lhe dizer que era tudo mentira, que vinha a pensar nela. Mas não foi capaz, mais uma vez não foi capaz.
— E posso saber quantas foram? — perguntou ela num tom divertido.
— Mais de cinco, menos de dez — respondeu ele depois de pensar uns segundos.
Ela apenas sorriu.
— Acho que é um bom número — disse ele.
— O que queres dizer? — perguntou.
— Sete, foram sete e acho que é um bom número. — Inspirou fundo e falou de olhos no chão. — Até há pouco tempo achava que era um número pequeno, mas agora, agora percebo que não. A primeira vez tinha catorze anos. Só comecei a namorar com a Teresa com vinte e três anos, o que dá algo para contar em quase todos os anos. Na altura parecia pouco, parecia tão pouco que quase rebentava de tanto querer. Mas estava enganado.
Ela ficou a olhar para ele, parecia surpreendida. Não eram propriamente amigos. Encontravam-se muitas vezes a caminho do escritório, mas falavam muito pouco. João gostava do som da voz dela, às vezes gostava tanto que quase não prestava atenção ao que ela dizia. Não sabia o que ela pensava dele, imaginava, construía histórias, conversas que repetia antes de adormecer.
— Queres explicar? — perguntou ela interrompendo-lhe os pensamentos.
— Lembro-me de todos, percebes? — disse ele em voz alta. — Nunca fui muito de namoros, a maior parte das vezes não duraram muito, alguns só mesmo um dia, por isso lembro-me de todos, de todos os primeiros momentos, dos lábios a tocar, dos sorrisos escondidos, das mãos suadas apertadas. Tenho sorte, acho que tenho sorte.
Levantou a cabeça e olhou para ela. Maria tinha os olhos vidrados, mas a expressão era de medo. Sentiu alguém atrás dele e ouviu um som metálico.
— Não quero chatices — ouviu antes de se virar.
Era um rapaz, por muito sujo que estivesse, por muito que a lâmina estivesse perto da sua garganta, que conseguisse sentir o seu cheiro, não deixava de ser um rapaz.
— Calma — ouviu Maria a pedir. — Não queremos que alguém se magoe.
— Alguém? — disse o rapaz num riso nervoso. — Só vocês é que se magoam, eu...
João não o deixou acabar. Torceu-lhe o pulso de repente e a navalha rasgou o ombro do rapaz. Atirou-se à cara dele de punhos fechados, acertou-lhe com um joelho no estômago e deitou-o ao chão. Ele tentou levantar-se mas João deu-lhe um pontapé com força no peito. O rapaz caiu para trás e rolou no passeio. Ficou deitado de barriga para baixo sem se mexer. João procurou a faca e guardou-a no bolso das calças. De joelhos no chão olhou para Maria.
— Vai!
— Mas João...
— Maria, vai! Eu já vou ter contigo.
Ela desatou a correr rua abaixo, ele voltou ao rapaz. Algumas pessoas na rua tinham-se aproximado mas um olhar bastou, os olhos dele nos dos outros foram suficientes para ficar sozinho. O rapaz tremia ligeiramente. Virou-o para cima e percebeu que o corte no ombro não era profundo. Ajudou-o a levantar-se e sentou-o num banco.
— Como te chamas? — perguntou.
— Carlos — respondeu ele. — O meu nome é Carlos.
— Não és de cá pois não? — perguntou de forma calma.
— Não, não sou — respondeu.
João abriu a carteira e tirou de dentro dela três notas de vinte. Estendeu a mão para o rapaz.
— Chega para ires para casa?
Ele olhou espantado. Mas respondeu.
— Sobra — disse endireitando-se no banco.
— Assim comes qualquer coisa — disse-lhe enquanto esticava a mão para chamar um táxi. — Podes ir de comboio?
— Não, só dá de autocarro — respondeu desconfiado.
— Não há problema, falas com o taxista, ele sabe de certeza onde te levar.
Um táxi parou e João levantou-se. O rapaz imitou-o sem dizer nada. João deu uma nota de dez ao taxista e disse-lhe que o rapaz precisava de ir apanhar um autocarro. O homem anuiu de forma despreocupada. João abriu a porta de trás e esperou. O rapaz olhou-o nos olhos pela primeira vez.
— Como é que sabes que eu não paro na primeira esquina? — perguntou.
— Não sei — respondeu-lhe a sorrir. — Essa é a parte boa. Para mim tu vais mesmo entrar no autocarro. Vou acreditar para sempre nisso, que te ajudei, que de alguma forma posso ter mudado a tua vida. É um pensamento bom, mas é só um pensamento, não vai mudar a minha vida. Não sou eu que entro ou não no autocarro.
— E se eu amanhã estiver aqui outra vez? — perguntou ele.
João não respondeu, ajudou-o a entrar para o carro e disse ao taxista para arrancar. Afastaram-se depressa. O rapaz não olhou para trás e João ficou a ver o táxi a desaparecer ao longe. Sentiu a faca no bolso. Uma voz trouxe-o de volta.
— João, estás bem?
Voltou-se e percebeu que Maria não tinha ido longe.
— Não foste embora — disse.
Ela ficou um minuto a olhar para ele, como se quisesse escolher as palavras certas, como quando se descobre alguém pela primeira vez, como quando se descobre quem se é, através de outra pessoa.
— Oito — disse sem tirar os olhos dele.
— Desculpa? — disse ele sem perceber.
Maria não respondeu. Pôs os braços à volta do pescoço dele e beijou-o com força. João agarrou-a pela cintura e puxou-a para ele. Ela falou ainda com os lábios nos dele.
— Se por acaso estiveres a pensar se isto tem a ver com o que acabou de se passar, digo-te já que sim, que me sinto viva, que te sinto e não te quero largar nunca mais.
João esperou antes de responder.
— Eu não sei bem o que se passou Maria. Não sei bem o que pensar. Libertei-me, gritei cá dentro, mas assusta. E dói, dói muito Maria.
Não conseguiu continuar e ela beijou-o outra vez. João sentiu outra vez a faca no bolso.
Esperou durante três horas. Tinha entrado no prédio com uma senhora que caminhava com a ajuda de uma bengala. Ajudou a senhora a subir as escadas e depois escondeu-se no corredor. Não sabia se Maria ia demorar, o que lhe dava tempo, tempo para repetir as frases já ensaiadas. Depois do dia em que tudo se passara, depois do beijo, depois do rapaz, não a voltara a ver. No dia seguinte não conseguiu ir trabalhar, durante uma semana quase não saiu da cama. Não respondeu a telefonemas, não atendeu a porta, não ligou a televisão nem o computador. Fugiu do mundo, fugiu dele próprio e do que sentia, de não saber, de não perceber, de se sentir mais sozinho. A porta do prédio abriu-se e uma tosse ligeira respondeu à dúvida. Maria poisou alguns sacos no chão e procurou a chave numa mala feita de trapos coloridos. João esperou no escuro a apenas uns centímetros dela, contendo a respiração, ao mesmo tempo que tentava sentir-lhe o cheiro. Quando a porta se abriu saiu do esconderijo e empurrou Maria para dentro de casa. Ela caiu no chão e soltou um gemido. João fechou a porta e agachou-se junto a ela enquanto a via tentar levantar-se. Maria virou-se e sufocou num grito sem som, tentou falar mas João esmurrou-a com violência e atirou-a outra vez contra o chão de madeira. Depois sentou-se em cima do seu peito e segurou-a pelo pescoço com a mão esquerda. A mão direita segurava a faca do rapaz, a faca que ele passara dias a afiar e a limpar, a faca que era agora parte dele. Maria esqueceu-se do lábio em sangue, da dor nas costas contra o chão, da faca que reflectia a luz que entrava pela janela. Concentrou-se apenas em conseguir encher o peito de ar, em conseguir falar, num grito abafado.
— O que queres? Diz-me!
João não respondeu.
— Merda João, que merda é esta? — Ele aliviou a pressão no seu peito e no pescoço e ela gritou num soluço. — O que é que queres, o que é que queres?
— A verdade — disse ele com uma voz calma.
— A verdade? — Tentou soltar-se mas ele continuava a segurá-la com força suficiente para que ela mal se conseguisse mexer. Ela continuou a chorar. — Mas que merda de verdade João, tu, tu... foda-se cabrão de merda, vai-te foder! O que é isto, o que é isto?
Ele levantou-a e atirou-a para o sofá, depois chegou a ponta da faca à cara dela e começou a falar em voz baixa.
— Quero que alguém, que uma vez na vida alguém diga tudo. Quero saber o que sentes, o que sentes por mim, o que achas de mim. Quero saber o que te mete mais medo, o que desejas mais do que a própria vida, quero que deites tudo cá para fora, que não fique nada por dizer. Estou farto, percebes? Estou farto de não perceber, de não saber quem sou, de não saber o que as outras pessoas pensam. Quero perceber esta merda de mundo, esta merda de vida. Quero saber se as coisas são boas, se alguém se sente feliz, se tu és feliz, quero saber o que te faz feliz. Fala! Começa a falar!
Maria olhou para ele sem reacção, como se o mundo tivesse deixado de existir, como se tivesse deixado de fazer sentido. Ficou estranhamente calma e falou sem se importar com o que pudesse acontecer.
— E porque é que eu te vou dizer a verdade? Para não me magoares, para não me matares? Não achas que vai ser uma verdade pouco sentida? Achas mesmo que mereces a verdade?
João encostou a faca à cara de Maria, entre o olho esquerdo e a linha de cabelo.
— Tenho a certeza, porque só te ofereço a verdade, depois morres. E ninguém quer morrer a mentir.
Maria não percebeu se ele falava a sério, apesar de o sentir.
— João, ainda há tempo de consertares isto — disse tentando falar sem chorar.
— Não, não há — disse ele sem expressão.
A faca desceu devagar pela face de Maria. O sangue escorreu pelo pescoço e tocou, quente, no seu peito. Ela fechou os olhos e desistiu, já não havia tempo. João espetou a faca na mesa de madeira que estava em frente do sofá e esperou. Maria não pensou em tentar chegar à faca. Percebeu que ele tinha razão, que não morreria a mentir. Então fechou outra vez os olhos e voou dali para fora, apenas durante uns segundos. Depois olhou para João fixamente e sorriu.
— O que foi? — perguntou ele espantado.
— Posso só fazer uma pergunta?
— Sim, acho que sim — respondeu ele sem perceber, sem perceber o sorriso de Maria.
— E tu? Onde estás tu? És este, ou és o João do outro dia, que eu senti nos meus lábios? Onde está a tua verdade? Quando é que a descobriste, quando é que a contaste a ti mesmo?
João ficou calado. Maria continuou de olhos fechados, muito fechados.
— Sabes, eu também não percebo, mas tu és o mesmo, as mãos que me agarraram, que me tocaram na pele enquanto me beijavas, enquanto eu te beijava, são as mesmas mãos com que me magoaste, com que me vais magoar. E eu não percebo, porque não deviam ser as mesmas, não deviam ser iguais, não deviam saber ao mesmo, não deviam...
Percebeu que não estava a falar com algum objectivo, sabia que ia morrer. Percebeu que aquela era a sua verdade, que não podia deixar de a partilhar, mesmo que ele não a merecesse, mesmo que ele não percebesse, que já a estava a ouvir. Esperou.
Maria nunca arrancou a faca da mesa. Depois de abrir os olhos agarrou-a com as duas mãos e cravou-a ainda mais na madeira. João deixou o prédio e andou pela rua até de madrugada. Não tinha nenhuma desculpa, não queria nenhuma desculpa. Sabia que não enlouquecera, que nunca tinha deixado de ser ele, que isso não o assustava. Mas sabia que podia, sabia o que tinha sentido, sem se poder esquecer. Não se escondeu, esperou pelo castigo, ou pela redenção. Caminhou até amanhecer. Esperou.
João nunca mais deixou de sentir a faca no bolso. Maria voltou ao trabalho duas semanas depois. Cortou o cabelo curto, para não poder esconder a cicatriz. Ganhou o hábito de passar os dedos por ela, de sentir a estria na pele. Ria quando perguntavam, contava histórias impossíveis, em que ninguém acreditava. Passou a ser parte dela, invisível para os outros, sempre presente para ela.
João e Maria nunca mais trocaram uma única palavra. Não baixavam a cabeça quando se cruzavam no corredor, mas os olhos não tocavam os do outro, nunca ao mesmo tempo. Dois anos passaram, feitos de silêncio, Maria decidiu sair, sem precisar de o fazer. João não foi à festa de despedida, esperou no seu gabinete, esperou que os risos parassem, sem precisar de o fazer. No último dia cruzaram-se nas escadas, ele subia devagar, ela descia depressa, uma última vez. Pararam no mesmo degrau, as duas mãos no corrimão. O tempo passou. Maria agarrou a mão de João e apertou-a, puxou-a e levou-a à sua cara, desenhou a cicatriz com os dedos dele e sorriu. Ele ajeitou-lhe o cabelo por cima da orelha, que teimava em cair, o que os fez rir. Nenhum dos dois olhou para trás.
terça-feira, novembro 03, 2009
segunda-feira, julho 13, 2009
Nós
Dentro do carro. Não resisto e ponho a tocar a música que me fez chorar. Os teus olhos são verdes, só eu os consigo ver assim, só eu consigo ver que as cores são o que imaginamos. Os teus são verdes, como nas mil vezes que o gritaste a todos, até desistires, não pelo medo de ser louca, mas porque o desejavam. O tempo quase não dá para um pequeno adeus.
Lanço um desafio.
— Vamos fazê-lo maior.
— Mas... não se pode mexer no tempo.
Eu rio sem te magoar.
— Claro que sim, é a única coisa que podemos mudar, transformar estes minutos em horas, fechar os olhos e ficar aqui para sempre.
Os teus olhos brilham, castanhos, quase pretos. No primeiro sonho não eras tu, mas sim a menina do segredo, da feira e da noite de despedida.
Conto-te a história.
— Sou uma segunda escolha?
— Sim, neste sonho, aqui dentro do carro, és.
Choras, cedo demais. Depois perguntas.
— Quando é que percebeste?
— A tempo, acho que a tempo.
Porque fazes isto? Queres que me aproxime, que te deixe chegar, não vês que me fazes fugir?
— Só se quiseres, se continuares a lutar.
— Mas eu não luto...
Interrompo-te.
— Lutas, lutas sem fazer barulho, até que já nem percebes, mas lutas.
Tu ficas a pensar. Eu volto a pôr a música do princípio. Não é justo, mas desisti do que é justo.
— Quem é ela, no outro sonho?
Irrito-me.
— Nem penses, vive este, vive este se quiseres, os outros são meus, não são para partilhar.
Gritas comigo.
— Não se partilham sonhos? Não me faças rir. Percebes o que acabas de dizer?
Respondo com calma.
— Estes não. Vivem-se ao mesmo tempo.
— Palavras, só sabes viver em palavras, transformas todo o mundo com as palavras. Assim tudo pode ser o que quiseres, sabes isso não sabes?
Não respondo, apenas aponto para o relógio. As lágrimas voltam à tua cara, desta vez no momento certo. Perguntas o que já sabes.
— Só?
Sorrio antes de responder.
— Sim, só. Incrível, não é?
— Sim, nunca pensei que fosse possível...
Desisto de falar. Toco devagar nos teus dedos, primeiro como se fosse sem querer, depois como num pequeno engano, até ter de decidir. Faço um jogo comigo. Só se nenhum dos dois falar. Desejo, abro muito os olhos para que percebas, espero um minuto, com a minha mão na tua. Subo então pelo teu braço, pela pele arrepiada, toco-te no ombro, afasto a tua camisola e sopro, sinto o teu pescoço que se encolhe. Ponho os meus olhos nos teus, quase sem pestanejar, tento ver por trás do castanho, como quando olhamos o reflexo num vidro, antes de vermos mais longe. Cheiro o teu respirar, o calor do transpirar, do dia que passou por ti. Chego mais perto, os lábios a um segundo, transformado em dois, em mais um, que me faz tremer, depois colo-os aos teus, primeiro de forma leve, depois num apertar, que não nos deixa respirar. Puxo-te para mim, junto o teu corpo, o meu peito ao teu, com força, sem te magoar, até doer. Sinto as tuas mãos em mim, agarras-me a cabeça, mordes-me os lábios, beijos, que desisto de contar. Respiro fundo. Esqueço-me. De olhos bem fechados.
Imagino palavras em sussurro, que repito sem parar, até conseguir olhar. Estou sozinho no carro e deixo a música tocar, deixo que volte ao princípio, mais uma vez. Estico a mão e fecho a porta, que não ouvi abrir. Tenho as mãos vazias, mas o sonho começou...
Lanço um desafio.
— Vamos fazê-lo maior.
— Mas... não se pode mexer no tempo.
Eu rio sem te magoar.
— Claro que sim, é a única coisa que podemos mudar, transformar estes minutos em horas, fechar os olhos e ficar aqui para sempre.
Os teus olhos brilham, castanhos, quase pretos. No primeiro sonho não eras tu, mas sim a menina do segredo, da feira e da noite de despedida.
Conto-te a história.
— Sou uma segunda escolha?
— Sim, neste sonho, aqui dentro do carro, és.
Choras, cedo demais. Depois perguntas.
— Quando é que percebeste?
— A tempo, acho que a tempo.
Porque fazes isto? Queres que me aproxime, que te deixe chegar, não vês que me fazes fugir?
— Só se quiseres, se continuares a lutar.
— Mas eu não luto...
Interrompo-te.
— Lutas, lutas sem fazer barulho, até que já nem percebes, mas lutas.
Tu ficas a pensar. Eu volto a pôr a música do princípio. Não é justo, mas desisti do que é justo.
— Quem é ela, no outro sonho?
Irrito-me.
— Nem penses, vive este, vive este se quiseres, os outros são meus, não são para partilhar.
Gritas comigo.
— Não se partilham sonhos? Não me faças rir. Percebes o que acabas de dizer?
Respondo com calma.
— Estes não. Vivem-se ao mesmo tempo.
— Palavras, só sabes viver em palavras, transformas todo o mundo com as palavras. Assim tudo pode ser o que quiseres, sabes isso não sabes?
Não respondo, apenas aponto para o relógio. As lágrimas voltam à tua cara, desta vez no momento certo. Perguntas o que já sabes.
— Só?
Sorrio antes de responder.
— Sim, só. Incrível, não é?
— Sim, nunca pensei que fosse possível...
Desisto de falar. Toco devagar nos teus dedos, primeiro como se fosse sem querer, depois como num pequeno engano, até ter de decidir. Faço um jogo comigo. Só se nenhum dos dois falar. Desejo, abro muito os olhos para que percebas, espero um minuto, com a minha mão na tua. Subo então pelo teu braço, pela pele arrepiada, toco-te no ombro, afasto a tua camisola e sopro, sinto o teu pescoço que se encolhe. Ponho os meus olhos nos teus, quase sem pestanejar, tento ver por trás do castanho, como quando olhamos o reflexo num vidro, antes de vermos mais longe. Cheiro o teu respirar, o calor do transpirar, do dia que passou por ti. Chego mais perto, os lábios a um segundo, transformado em dois, em mais um, que me faz tremer, depois colo-os aos teus, primeiro de forma leve, depois num apertar, que não nos deixa respirar. Puxo-te para mim, junto o teu corpo, o meu peito ao teu, com força, sem te magoar, até doer. Sinto as tuas mãos em mim, agarras-me a cabeça, mordes-me os lábios, beijos, que desisto de contar. Respiro fundo. Esqueço-me. De olhos bem fechados.
Imagino palavras em sussurro, que repito sem parar, até conseguir olhar. Estou sozinho no carro e deixo a música tocar, deixo que volte ao princípio, mais uma vez. Estico a mão e fecho a porta, que não ouvi abrir. Tenho as mãos vazias, mas o sonho começou...
terça-feira, fevereiro 24, 2009
O Velho no Cais
Era uma vez um rapaz que vivia num porto. Desde pequeno que aprendera a esperar, sentado no cais de madeira. Olhava as gaivotas, contava os barcos que partiam, aguardava-os ao fim da tarde. O pai desapareceu no mar, num dia de febre passado em casa, em que não o pôde ir esperar. Depois do choro descobriu, o seu destino era ver os outros, guardar os barcos com o olhar, até um dia morrer.
O segredo passou de voz em voz, no remendo das redes, nas rezas das mulheres. No porto, o rapaz cresceu, sem outro dia falhar, debaixo de chuva, da noite no dia, do fogo no céu, de gigantes de espuma. Fez-se velho, com barbas cinzentas, embaraçadas pelo vento. As velas apagaram-se, dos terços só o silêncio, um pescador não se benzeu, no dia em que foi pai. Enquanto ele os guardasse.
Um dia o velho morreu, no sítio onde viveu, caiu para o lado, no desespero dos outros. Deram voltas ao corpo, rasgaram sem respeito, correram para uma casa, que não tinha dono. Mulheres, cartas, uma fotografia velha, um amuleto esquecido, não havia nada. Fugiu-lhes a coragem, perdidos no enjoo, da terra nos seus pés, até à fome e à dor. Depois no medo partiram, de olhos no fim do mar, que tinha sabido esperar. Ao velho nem um buraco, caiu na lama, debaixo do cais de madeira, apodreceu com ela.
Passaram muitos anos, feitos dos mesmos dias. Numa tarde de Inverno, um rapaz sentou-se a contar os barcos, que não tinha visto partir. Esperou até à noite, agarrado ao último dedo, na esperança de o poder largar. Outro pai morreu. O rapaz repetiu uma promessa, já feita no mesmo lugar, e sentou-se no cais. Os corações encheram-se, de sorrisos escondidos, de egoísmo e esperança, de vergonha não sentida. Enquanto ele os guardasse.
Manhã
Bia e Rosa olhavam para a avó de olhos bem abertos. Ficavam sempre sem conseguir falar antes de perguntarem, de ganharem coragem para ouvir outra vez.
— E depois avó, o que aconteceu aos pescadores? — perguntou Bia, sem aguentar mais.
— Nada, durante muitos anos não aconteceu nada. — Fez uma pausa. — Até que um dia houve uma grande tempestade.
— E? — perguntou Rosa, quase se atrevendo a contar.
— Nenhum dos barcos voltou, nem um único voltou — disse a avó num tom grave.
As duas miúdas estremeceram. Era a sua parte favorita.
— E o rapaz, não cumpriu a promessa? — perguntaram ao mesmo tempo.
— O rapaz tinha-se ido embora muito tempo antes, no mesmo dia em que fez a promessa, foi-se embora nesse mesmo dia — respondeu com os olhos a brilhar.
— E o que lhe aconteceu? — Perguntaram baixinho, como se tivessem medo, como se fosse possível, que a resposta não fosse a mesma.
A avó sorriu antes de continuar.
— O rapaz foi viver para longe, esqueceu-se do porto, do cais, de todos os que ficaram para trás, para ser feliz...
— Mas morreu... — deixou escapar Bia, perante o olhar zangado da irmã.
— Sim querida — disse a avó —, ele também morreu no mar, quando ajudava um barco que se estava a afundar.
— Como o avô João? — perguntou Bia. — O rapaz também salvava pessoas no mar?
Os olhos da avó encheram-se de lágrimas. Tentou responder mas não conseguiu. A porta do quarto abriu-se e uma voz fez com que as duas raparigas dessem um salto.
— Meninas, têm cinco minutos para estarem as duas deitadas na cama.
— Mas mãe... — tentaram argumentar.
— Eu não volto a mandar — disse com um ar zangado. — Sabem muito bem que já passa da vossa hora.
As duas deram um beijo à avó e saíram do quarto a correr. A mãe só falou depois da porta se ter fechado.
— Mãe...
— Eu sei Teresa — disse baixinho, mas num tom firme –, eu sei que elas ainda são pequenas, mas é também a história delas, é a história de todos nós.
— Eu sei mãe, eu sei — disse enquanto lhe penteava o cabelo branco com os dedos. — Tenha só cuidado, eu sei que a história que lhes conta, as palavras que lhes diz, não são as que tem na cabeça.
— O mundo delas é perfeito Teresa, eu não nunca iria estragar isso — disse, antes de respirar fundo. — Mas a história é a mesma, acredita que é a mesma.
Teresa não respondeu, olhou para o quarto e para as fotografias em cima da cómoda. Antes de sair falou sem olhar para trás.
— Mãe, acha mesmo que ele se esqueceu? — perguntou. — Ele quando recebeu a notícia da tempestade, dos barcos não terem voltado, ele... ele quase não disse nada.
A avó sorriu antes de responder.
— Não filha, ele não se esqueceu, nunca se esqueceu... só quis poder escolher.
O segredo passou de voz em voz, no remendo das redes, nas rezas das mulheres. No porto, o rapaz cresceu, sem outro dia falhar, debaixo de chuva, da noite no dia, do fogo no céu, de gigantes de espuma. Fez-se velho, com barbas cinzentas, embaraçadas pelo vento. As velas apagaram-se, dos terços só o silêncio, um pescador não se benzeu, no dia em que foi pai. Enquanto ele os guardasse.
Um dia o velho morreu, no sítio onde viveu, caiu para o lado, no desespero dos outros. Deram voltas ao corpo, rasgaram sem respeito, correram para uma casa, que não tinha dono. Mulheres, cartas, uma fotografia velha, um amuleto esquecido, não havia nada. Fugiu-lhes a coragem, perdidos no enjoo, da terra nos seus pés, até à fome e à dor. Depois no medo partiram, de olhos no fim do mar, que tinha sabido esperar. Ao velho nem um buraco, caiu na lama, debaixo do cais de madeira, apodreceu com ela.
Passaram muitos anos, feitos dos mesmos dias. Numa tarde de Inverno, um rapaz sentou-se a contar os barcos, que não tinha visto partir. Esperou até à noite, agarrado ao último dedo, na esperança de o poder largar. Outro pai morreu. O rapaz repetiu uma promessa, já feita no mesmo lugar, e sentou-se no cais. Os corações encheram-se, de sorrisos escondidos, de egoísmo e esperança, de vergonha não sentida. Enquanto ele os guardasse.
Manhã
Bia e Rosa olhavam para a avó de olhos bem abertos. Ficavam sempre sem conseguir falar antes de perguntarem, de ganharem coragem para ouvir outra vez.
— E depois avó, o que aconteceu aos pescadores? — perguntou Bia, sem aguentar mais.
— Nada, durante muitos anos não aconteceu nada. — Fez uma pausa. — Até que um dia houve uma grande tempestade.
— E? — perguntou Rosa, quase se atrevendo a contar.
— Nenhum dos barcos voltou, nem um único voltou — disse a avó num tom grave.
As duas miúdas estremeceram. Era a sua parte favorita.
— E o rapaz, não cumpriu a promessa? — perguntaram ao mesmo tempo.
— O rapaz tinha-se ido embora muito tempo antes, no mesmo dia em que fez a promessa, foi-se embora nesse mesmo dia — respondeu com os olhos a brilhar.
— E o que lhe aconteceu? — Perguntaram baixinho, como se tivessem medo, como se fosse possível, que a resposta não fosse a mesma.
A avó sorriu antes de continuar.
— O rapaz foi viver para longe, esqueceu-se do porto, do cais, de todos os que ficaram para trás, para ser feliz...
— Mas morreu... — deixou escapar Bia, perante o olhar zangado da irmã.
— Sim querida — disse a avó —, ele também morreu no mar, quando ajudava um barco que se estava a afundar.
— Como o avô João? — perguntou Bia. — O rapaz também salvava pessoas no mar?
Os olhos da avó encheram-se de lágrimas. Tentou responder mas não conseguiu. A porta do quarto abriu-se e uma voz fez com que as duas raparigas dessem um salto.
— Meninas, têm cinco minutos para estarem as duas deitadas na cama.
— Mas mãe... — tentaram argumentar.
— Eu não volto a mandar — disse com um ar zangado. — Sabem muito bem que já passa da vossa hora.
As duas deram um beijo à avó e saíram do quarto a correr. A mãe só falou depois da porta se ter fechado.
— Mãe...
— Eu sei Teresa — disse baixinho, mas num tom firme –, eu sei que elas ainda são pequenas, mas é também a história delas, é a história de todos nós.
— Eu sei mãe, eu sei — disse enquanto lhe penteava o cabelo branco com os dedos. — Tenha só cuidado, eu sei que a história que lhes conta, as palavras que lhes diz, não são as que tem na cabeça.
— O mundo delas é perfeito Teresa, eu não nunca iria estragar isso — disse, antes de respirar fundo. — Mas a história é a mesma, acredita que é a mesma.
Teresa não respondeu, olhou para o quarto e para as fotografias em cima da cómoda. Antes de sair falou sem olhar para trás.
— Mãe, acha mesmo que ele se esqueceu? — perguntou. — Ele quando recebeu a notícia da tempestade, dos barcos não terem voltado, ele... ele quase não disse nada.
A avó sorriu antes de responder.
— Não filha, ele não se esqueceu, nunca se esqueceu... só quis poder escolher.
segunda-feira, novembro 10, 2008
Humberto
Humberto comia multas de estacionamento, subia e descia a avenida cem vezes por dia, comia as multas que retirava dos carros. Contava aos amigos, os velhos que dormem na rua, que tinha um sonho, comer mil multas num só dia e depois morrer, rebentar, marcar para sempre a montra de uma loja fina. Um dia aconteceu, esperou vinte minutos pelo fiscal, gostava de lhes chamar assim, puxou-o para ver a infracção, a transgressão inaceitável, uns bandidos, todos mortos à paulada. Um último desejo, tinta permanente, um nome, uma assinatura, pelo menos uma vez, a última vez. Ofereceu a caneta ao fiscal, rapaz louro pouco esperto, que não teve tempo de a admirar, ficou coberto da cabeça aos pés, de Humberto e papel, carne, sangue e cuspo, que a saliva é dos ricos, corre pura sem espuma. Juntou-se uma multidão, dizem que eram ao todo mil, perdoados, livres num segundo. Ouviu-se então, ecoou pela avenida, um aplauso, como se fosse para um Rei, que acenava de uma carruagem. Humberto ficou famoso, guardado no coração dos que ali estavam, que só fugiram pela força, esmurrados, empurrados pelos canhões de água, que também lavaram o chão, tudo para a sarjeta. Ficou a dúvida, porque nada havia e a palavra deixou de valer. Restou um segredo, um sinal trocado entre os que viram, que o guardaram, até ao fim das suas vidas. Humberto fez-se cidade.
domingo, novembro 02, 2008
Nightswimming
Comecei a dormir mais, depois de atingir o limite comecei a dormir mais. Ao fim de duas semanas tudo tinha mudado. Passei a acordar durante a noite, como acontecia quando era mais novo. Os sonhos voltaram, o lembrar de longas histórias que decidi esquecer. Nas manhãs, em todas as manhãs, começou a fazer sentido acordar. O leite frio à janela, o pão com passas e canela, o arroz doce quase gelado, roubado ao dia anterior. No prédio em frente vivia uma senhora muita velha, tinha o cabelo mais branco que alguma vez vira. Em casa dela não havia homens, só a filha, uma senhora gorda com um olhar triste, e a neta, que fingia não me ver. Era como se o tempo se estendesse, trazendo história e histórias antigas, quase sempre de quando era miúdo, um rapaz magro, uma noite quente, um banho no escuro, a madeira de uma casa escondida. Um dia a rapariga, a neta da senhora muito velha, sentou-se numa cadeira e olhou para mim, sem desistir, como se ameaçasse ficar ali para sempre. Nesse momento, nesse preciso momento decidi voltar, nervoso, com o que iria encontrar.
Entrei na mercearia com medo, de ser reconhecido, de abraços apertados, de ninguém se lembrar. Uma voz grossa desfez a dúvida.
— Ora, ora! Olha só quem voltou.
Sorri ainda antes de me virar.
— Olá senhor Carlos.
— E lembra-se dos velhos — disse ele num riso sincero. — Maria! Anda cá mulher, que não vais acreditar quem aqui está.
Ouvi uma voz a pedir um minuto e observei a pequena loja enquanto o senhor Carlos atendia uma senhora toda vestida de preto. Passara tardes sem conta naquele sítio, o filho do senhor Carlos e da senhora Maria foi sempre o meu melhor amigo, desde a escola primária até ele emigrar para Inglaterra. Os pais nunca aceitaram a decisão dele, pelos menos era o que diziam, a mim parecia-me ver orgulho, no reflexo das lágrimas. Uma mão separou as fitas de uma porta, dois braços esticaram-se para mim.
— Rui!
— Olá senhora Maria — disse eu já no meio de um abraço. O cheiro dela era o mesmo.
— Ai rapaz! Estás igual, sempre com esses olhos verdes a brilhar.
— Eu? — disse envergonhado. — Vocês é que não mudaram nada. Na verdade, parece que nada mudou, parece que ainda foi ontem que eu e o Filipe corríamos por entre as caixas.
— E me comiam o bacalhau à dentada — disse o senhor Carlos a rir. — Cada vez que me lembro da senhora Júlia a olhar para as marcas dos vossos dentes. Tive de lhe oferecer uma caixa inteira, que a mulher jurava que aqui havia ratos, que nunca mais cá voltava. Lembrava-me bem desse dia, eu e o Filipe escondidos debaixo do balcão, divididos entre a vontade de rir, e a promessa de uma tareia.
— E o Filipe? — perguntei a medo.
O senhor Carlos virou a cabeça, fingiu fazer umas contas num papel.
— O Filipe está bem — disse a senhora Maria em voz baixa.
— Mas e vocês? Está tudo bem entre todos?
— Sim — disse ela a sorrir. — Não ligues a esse velho tonto. O Filipe vai ser pai e nós vamos lá no Natal. Adivinha lá quem já foi comprar os bilhetes de avião todo inchado?
— Ainda bem, eu penso muitas vezes nele, mas...
— Eu sei, não digas nada, a vida é mesmo assim — disse ela olhando para mim com ternura. — Mas e tu? Não esperava ver-te mais por aqui, principalmente depois dos teus pais terem ido embora. Eles estão bem?
— Sim, acho que sim — respondi sem saber bem o que dizer. — Não tenho estado muito com eles, mas sim, estão bem.
— Mas e tu, o que te trouxe cá? Não vieste só visitar estes velhotes — disse ela de forma serena. Não consegui responder.
Passei a tarde inteira na pensão, a contar os minutos, à espera que escurecesse. O encontro com Mariana tinha sido estranho, apesar de ter sonhado com aquele momento tantas vezes. Não esperava que chocássemos no meio da rua, que não precisasse de procurar. O convite chegou como um soco, repetido até eu responder, mas sem ela se parecer importar. Ela continuava a ir nadar ao lago, em todas as noites quentes, como se os anos tivessem sido dias, como se o tempo não demorasse a passar. Saí depois das oito, escolhendo o caminho mais longo, até não poder mais adiar. Parei o carro perto da casa velha, desliguei os faróis e fui engolido pela noite, não havia lua, só estrelas, milhões e milhões de estrelas. Pisei a madeira devagar e sentei-me ao lado dela.
— Demoraste a chegar — disse ela sem desviar os olhos da água. — Pensei se te tinhas esquecido.
— Não — disse com a voz a tremer. — Como é que me podia esquecer?
— Sei lá — disse ela meio a rir. — Podias ter adormecido, ou ficares preso num filme, um daqueles que não conseguimos parar de ver.
Esperei antes de falar, sabia que tinha de falar, ou então nunca iria dizer, tudo o que estava dentro de mim. Obriguei as palavras.
— Lembras-te de aqui termos estado?
Mariana olhou para mim, olhou-me nos olhos, como não fazia desde que éramos apenas dois miúdos.
— Sim, tenho ideia disso. Aconteceu alguma coisa de especial que eu me devesse lembrar? — perguntou numa gargalhada. — Estás com um ar tão sério.
— Aconteceu que essa noite, essa noite em particular, eu...
— Rui, não compliques, fala!
Inspirei fundo.
— É que, vais achar-me maluco, mas eu... eu faço uma coisa estranha, nem sei bem explicar.
— Tenta — disse ela, sem pressa na voz.
— Isto parece de malucos, mas às vezes, às vezes acontece algo completamente banal, uma folha a voar que me bate na mão, o vento numa flor, alguém que diz uma palavra com uma pronúncia esquisita...
— Todas as coisas que acontecem — interrompeu ela. — Estás a falar de tudo, não é?
— Sim, acho que sim.
— Mas e o que é que acontece? — perguntou ela.
— Bem, às vezes eu... às vezes algumas dessas coisas, apesar de não serem diferentes de tudo o que acontece a cada segundo, eu lembro-me delas, vejo-as na minha cabeça centenas de vezes.
Parei um segundo antes de continuar, senti o coração a bater como se fosse rebentar.
— E essa vez, quando aqui estivemos, sentámo-nos precisamente neste sítio e uma gota de suor escorreu-me pelas costas, e... e eu lembro-me disso, da sensação do suor nas costas, lembro-me disso quase todos os dias...
— Rui — interrompeu ela outra vez —, o que é que queres dizer?
Gritei dentro de mim.
— É que... também me lembro de ti, do teu corpo, num fato de banho preto, do cheiro do teu cabelo molhado. Todos os dias Mariana! Penso nessas coisas quase todos os dias, mas não queria, não queria...
Desisti de explicar, pela primeira vez na vida não tentei explicar, esperei, apenas esperei.
— Rui — disse ela, sem precisar de tempo para pensar. — Rui, eu lembro-me de aqui ter estado contigo, mas não me lembro do fato de banho que tinha, não me lembro do que falámos. Acho que o cheiro do cabelo é o mesmo, mas todos estes anos, não foram passados a pensar em ti.
Fiquei à espera que ela continuasse.
— Imagino que tenha sido um sonho bonito Rui.
— Muitos sonhos bonitos — disse eu.
— Mas foram sonhos teus, foram só sonhos teus.
Ficámos em silêncio, um silêncio que não trouxe desconforto, só o barulho da água. Depois, no momento certo ela falou, como se esperasse pelo refrão de uma música, que só ela conseguia ouvir.
— Agora vais-te embora, não é? — perguntou. — Eu sei que ainda não sabes, que não planeaste nada, mas pensa, é isso que vai acontecer, certo? Apesar de todos estes anos, de pensares em mim a toda a hora, de eu ser a razão de teres voltado, no fim vais acabar por ir embora, mesmo que eu te tivesse dito, que todas as vezes que aqui vim, que também sonhava contigo.
Ela tinha entrado em mim, como nunca ninguém tinha feito ela tinha entrado em mim, ao ponto de saber, de me conseguir ler. Mais uma vez desisti de falar, de explicar, para conseguir ouvir, para conseguir sentir. Mariana chegou-se a mim, tirou-me a camisola devagar e despiu também a dela. Tocou com uma das mãos nas minhas costas, durante um segundo apenas, o suficiente para eu me lembrar. O resto da roupa espalhou-se pelo chão e deslizámos para dentro de água, esperámos um minuto por um beijo, pelo entrelaçar dos corpos. No brilho das estrelas vi a expressão dela, o seu sorriso, que me fez lembrar o da senhora Maria, o mais tranquilo que conhecia, que tantas vezes desejei, que fosse o da minha mãe.
— Rui — disse ela, como se estivesse a cantar —, hoje dormes em minha casa, amanhã... para amanhã só quero que me prometas uma coisa.
— O quê? — perguntei.
— Que começas o dia, que vais começar o dia, como se fosse a primeira vez.
— Está bem Mariana, está bem...
Nadámos para o meio do lago, de olhos no céu.
Entrei na mercearia com medo, de ser reconhecido, de abraços apertados, de ninguém se lembrar. Uma voz grossa desfez a dúvida.
— Ora, ora! Olha só quem voltou.
Sorri ainda antes de me virar.
— Olá senhor Carlos.
— E lembra-se dos velhos — disse ele num riso sincero. — Maria! Anda cá mulher, que não vais acreditar quem aqui está.
Ouvi uma voz a pedir um minuto e observei a pequena loja enquanto o senhor Carlos atendia uma senhora toda vestida de preto. Passara tardes sem conta naquele sítio, o filho do senhor Carlos e da senhora Maria foi sempre o meu melhor amigo, desde a escola primária até ele emigrar para Inglaterra. Os pais nunca aceitaram a decisão dele, pelos menos era o que diziam, a mim parecia-me ver orgulho, no reflexo das lágrimas. Uma mão separou as fitas de uma porta, dois braços esticaram-se para mim.
— Rui!
— Olá senhora Maria — disse eu já no meio de um abraço. O cheiro dela era o mesmo.
— Ai rapaz! Estás igual, sempre com esses olhos verdes a brilhar.
— Eu? — disse envergonhado. — Vocês é que não mudaram nada. Na verdade, parece que nada mudou, parece que ainda foi ontem que eu e o Filipe corríamos por entre as caixas.
— E me comiam o bacalhau à dentada — disse o senhor Carlos a rir. — Cada vez que me lembro da senhora Júlia a olhar para as marcas dos vossos dentes. Tive de lhe oferecer uma caixa inteira, que a mulher jurava que aqui havia ratos, que nunca mais cá voltava. Lembrava-me bem desse dia, eu e o Filipe escondidos debaixo do balcão, divididos entre a vontade de rir, e a promessa de uma tareia.
— E o Filipe? — perguntei a medo.
O senhor Carlos virou a cabeça, fingiu fazer umas contas num papel.
— O Filipe está bem — disse a senhora Maria em voz baixa.
— Mas e vocês? Está tudo bem entre todos?
— Sim — disse ela a sorrir. — Não ligues a esse velho tonto. O Filipe vai ser pai e nós vamos lá no Natal. Adivinha lá quem já foi comprar os bilhetes de avião todo inchado?
— Ainda bem, eu penso muitas vezes nele, mas...
— Eu sei, não digas nada, a vida é mesmo assim — disse ela olhando para mim com ternura. — Mas e tu? Não esperava ver-te mais por aqui, principalmente depois dos teus pais terem ido embora. Eles estão bem?
— Sim, acho que sim — respondi sem saber bem o que dizer. — Não tenho estado muito com eles, mas sim, estão bem.
— Mas e tu, o que te trouxe cá? Não vieste só visitar estes velhotes — disse ela de forma serena. Não consegui responder.
Passei a tarde inteira na pensão, a contar os minutos, à espera que escurecesse. O encontro com Mariana tinha sido estranho, apesar de ter sonhado com aquele momento tantas vezes. Não esperava que chocássemos no meio da rua, que não precisasse de procurar. O convite chegou como um soco, repetido até eu responder, mas sem ela se parecer importar. Ela continuava a ir nadar ao lago, em todas as noites quentes, como se os anos tivessem sido dias, como se o tempo não demorasse a passar. Saí depois das oito, escolhendo o caminho mais longo, até não poder mais adiar. Parei o carro perto da casa velha, desliguei os faróis e fui engolido pela noite, não havia lua, só estrelas, milhões e milhões de estrelas. Pisei a madeira devagar e sentei-me ao lado dela.
— Demoraste a chegar — disse ela sem desviar os olhos da água. — Pensei se te tinhas esquecido.
— Não — disse com a voz a tremer. — Como é que me podia esquecer?
— Sei lá — disse ela meio a rir. — Podias ter adormecido, ou ficares preso num filme, um daqueles que não conseguimos parar de ver.
Esperei antes de falar, sabia que tinha de falar, ou então nunca iria dizer, tudo o que estava dentro de mim. Obriguei as palavras.
— Lembras-te de aqui termos estado?
Mariana olhou para mim, olhou-me nos olhos, como não fazia desde que éramos apenas dois miúdos.
— Sim, tenho ideia disso. Aconteceu alguma coisa de especial que eu me devesse lembrar? — perguntou numa gargalhada. — Estás com um ar tão sério.
— Aconteceu que essa noite, essa noite em particular, eu...
— Rui, não compliques, fala!
Inspirei fundo.
— É que, vais achar-me maluco, mas eu... eu faço uma coisa estranha, nem sei bem explicar.
— Tenta — disse ela, sem pressa na voz.
— Isto parece de malucos, mas às vezes, às vezes acontece algo completamente banal, uma folha a voar que me bate na mão, o vento numa flor, alguém que diz uma palavra com uma pronúncia esquisita...
— Todas as coisas que acontecem — interrompeu ela. — Estás a falar de tudo, não é?
— Sim, acho que sim.
— Mas e o que é que acontece? — perguntou ela.
— Bem, às vezes eu... às vezes algumas dessas coisas, apesar de não serem diferentes de tudo o que acontece a cada segundo, eu lembro-me delas, vejo-as na minha cabeça centenas de vezes.
Parei um segundo antes de continuar, senti o coração a bater como se fosse rebentar.
— E essa vez, quando aqui estivemos, sentámo-nos precisamente neste sítio e uma gota de suor escorreu-me pelas costas, e... e eu lembro-me disso, da sensação do suor nas costas, lembro-me disso quase todos os dias...
— Rui — interrompeu ela outra vez —, o que é que queres dizer?
Gritei dentro de mim.
— É que... também me lembro de ti, do teu corpo, num fato de banho preto, do cheiro do teu cabelo molhado. Todos os dias Mariana! Penso nessas coisas quase todos os dias, mas não queria, não queria...
Desisti de explicar, pela primeira vez na vida não tentei explicar, esperei, apenas esperei.
— Rui — disse ela, sem precisar de tempo para pensar. — Rui, eu lembro-me de aqui ter estado contigo, mas não me lembro do fato de banho que tinha, não me lembro do que falámos. Acho que o cheiro do cabelo é o mesmo, mas todos estes anos, não foram passados a pensar em ti.
Fiquei à espera que ela continuasse.
— Imagino que tenha sido um sonho bonito Rui.
— Muitos sonhos bonitos — disse eu.
— Mas foram sonhos teus, foram só sonhos teus.
Ficámos em silêncio, um silêncio que não trouxe desconforto, só o barulho da água. Depois, no momento certo ela falou, como se esperasse pelo refrão de uma música, que só ela conseguia ouvir.
— Agora vais-te embora, não é? — perguntou. — Eu sei que ainda não sabes, que não planeaste nada, mas pensa, é isso que vai acontecer, certo? Apesar de todos estes anos, de pensares em mim a toda a hora, de eu ser a razão de teres voltado, no fim vais acabar por ir embora, mesmo que eu te tivesse dito, que todas as vezes que aqui vim, que também sonhava contigo.
Ela tinha entrado em mim, como nunca ninguém tinha feito ela tinha entrado em mim, ao ponto de saber, de me conseguir ler. Mais uma vez desisti de falar, de explicar, para conseguir ouvir, para conseguir sentir. Mariana chegou-se a mim, tirou-me a camisola devagar e despiu também a dela. Tocou com uma das mãos nas minhas costas, durante um segundo apenas, o suficiente para eu me lembrar. O resto da roupa espalhou-se pelo chão e deslizámos para dentro de água, esperámos um minuto por um beijo, pelo entrelaçar dos corpos. No brilho das estrelas vi a expressão dela, o seu sorriso, que me fez lembrar o da senhora Maria, o mais tranquilo que conhecia, que tantas vezes desejei, que fosse o da minha mãe.
— Rui — disse ela, como se estivesse a cantar —, hoje dormes em minha casa, amanhã... para amanhã só quero que me prometas uma coisa.
— O quê? — perguntei.
— Que começas o dia, que vais começar o dia, como se fosse a primeira vez.
— Está bem Mariana, está bem...
Nadámos para o meio do lago, de olhos no céu.
terça-feira, setembro 23, 2008
Another World
Um dia. Existe um momento em que chegamos à dor, em que descobrimos, que estamos inevitavelmente sozinhos, fechados em nós. Um dia. Descobrimos que só nós vemos, que contar não chega, e perdemos a esperança, sem deixar de gritar.
No metro viajo de pé, caminho devagar, olho cada pessoa em silêncio, demoro, arrisco, antes de continuar. À minha frente está um homem musculado, com uma camisola apertada. Tem o cabelo molhado, madeixas separadas pelo suor, que revelam um segredo. Um pássaro tatuado, uma serpente, sangue, uma escolha minha. Olho para baixo e reparo nuns sapatos de mulher muitos velhos, estranho as meias castanhas no calor. Uma delas está rasgada, até perceber. Levanto os olhos e vejo que a mulher não é branca, que as meias não existem, apenas uma cicatriz de tom rosado. Sorrio com a confusão e observo-a. Um fato cinzento que parece encolher, no meio de muito vermelho, menos o fato e a pele. Ao longe outra mulher apanha o cabelo, na esperança de não ser reconhecida. Sei quem é, fala sempre confiante. Prefiro o metro, espreitar sem que perceba, quando fecha os olhos por um segundo. Antes de sair vejo uma rapariga, que usa um gancho verde no cabelo. Está de sandálias, mas tem os dedos muito tortos. Tem a cara gasta. Lembro-me de alguém, que também vi no metro.
Uma tarde fugia para casa, entrei na carruagem e tentei escolher alguém. À minha frente estava uma rapariga. Aproximei-me com cuidado. Parei quando vi as lágrimas. Ela chorava sem parar. Um choro que não se ouvia, um choro sem o soluçar, só lágrimas atrás de lágrimas, sem vergonha, sem se importar. Fiquei a olhar para ela, que não me via, por também estar sozinha. Mas senti a sua dor. Então reparei, nos dedos cortados, amputados ao acaso. O verniz disfarçava alguns, outros era impossível. Fiquei paralisado, na repulsa, ao mesmo tempo zangado, mas com vontade de fugir, ao chocar com os meus medos. Resisti, fiquei, olhei, obriguei-me a olhar, para as mãos imperfeitas, até esquecer. Voltei ao choro, a uma tristeza sem fim. Senti vontade de a abraçar, de dizer que estava tudo bem, que podia descansar, que podia deitar a cabeça no meu colo. Não senti pena, não venci o medo, de lhe tocar nos dedos, de fechar as minhas mãos nas dela. Mas devia tê-la abraçado, tê-la escondido em mim, sentir o seu corpo.
Estou sozinho, mas continuo a gritar, até perder o medo, de me lembrar.
No metro viajo de pé, caminho devagar, olho cada pessoa em silêncio, demoro, arrisco, antes de continuar. À minha frente está um homem musculado, com uma camisola apertada. Tem o cabelo molhado, madeixas separadas pelo suor, que revelam um segredo. Um pássaro tatuado, uma serpente, sangue, uma escolha minha. Olho para baixo e reparo nuns sapatos de mulher muitos velhos, estranho as meias castanhas no calor. Uma delas está rasgada, até perceber. Levanto os olhos e vejo que a mulher não é branca, que as meias não existem, apenas uma cicatriz de tom rosado. Sorrio com a confusão e observo-a. Um fato cinzento que parece encolher, no meio de muito vermelho, menos o fato e a pele. Ao longe outra mulher apanha o cabelo, na esperança de não ser reconhecida. Sei quem é, fala sempre confiante. Prefiro o metro, espreitar sem que perceba, quando fecha os olhos por um segundo. Antes de sair vejo uma rapariga, que usa um gancho verde no cabelo. Está de sandálias, mas tem os dedos muito tortos. Tem a cara gasta. Lembro-me de alguém, que também vi no metro.
Uma tarde fugia para casa, entrei na carruagem e tentei escolher alguém. À minha frente estava uma rapariga. Aproximei-me com cuidado. Parei quando vi as lágrimas. Ela chorava sem parar. Um choro que não se ouvia, um choro sem o soluçar, só lágrimas atrás de lágrimas, sem vergonha, sem se importar. Fiquei a olhar para ela, que não me via, por também estar sozinha. Mas senti a sua dor. Então reparei, nos dedos cortados, amputados ao acaso. O verniz disfarçava alguns, outros era impossível. Fiquei paralisado, na repulsa, ao mesmo tempo zangado, mas com vontade de fugir, ao chocar com os meus medos. Resisti, fiquei, olhei, obriguei-me a olhar, para as mãos imperfeitas, até esquecer. Voltei ao choro, a uma tristeza sem fim. Senti vontade de a abraçar, de dizer que estava tudo bem, que podia descansar, que podia deitar a cabeça no meu colo. Não senti pena, não venci o medo, de lhe tocar nos dedos, de fechar as minhas mãos nas dela. Mas devia tê-la abraçado, tê-la escondido em mim, sentir o seu corpo.
Estou sozinho, mas continuo a gritar, até perder o medo, de me lembrar.
quarta-feira, agosto 06, 2008
O Corcunda
Há demasiadas histórias de corcundas. Monstros, anjos escondidos de dentes podres, de sorrisos inocentes. Há demasiadas histórias sobre pessoas, porque todos o foram, um homem, uma mulher. Demasiadas histórias, sobre um destino alterado, por causa de um alto nas costas, de um curvar dorido. Nunca quis contar a minha, eu também disfarçado, preso nas sombras de uma casa velha. Mas hoje, nos meus últimos dias, já não consigo olhar o céu, só as palavras que escrevo, que desenho devagar. Desejo, sonho em morrer aqui, sobre a minha vida, feita de criar outras, de inventar destinos, em milhares de folhas pautadas. Sei que é difícil acreditar, mas eu não nasci corcunda. Difícil, para muitos impossível, descendo as escadas do casarão, contemplando as figuras, quadros pintados, dos que vieram antes de mim. Uma aberração atrás da outra, poupados ao circo, aos risos e espanto, mas para sempre marcados. Há anos que não desço as escadas, talvez por medo, de enfrentar o espaço vazio, guardado para um último quadro. Mas lembro-me da primeira vez que o fiz, que olhei de frente para a minha herança, e do orgulho nos olhos do meu pai, depois de correr até ele, de saltar para o seu colo e de lhe contar, que descobrira um segredo, que os homens nos quadros, estavam todos a sorrir. Quando fiz dez anos, no dia em que fiz dez anos, o meu mundo mudou. O meu pai, o meu avô, levaram-me até uma porta, que estava sempre fechada. A minha mãe escondeu as lágrimas, abraçada às minhas duas avós, não por medo, por tristeza, mas por saber, que ali, naquele momento, tudo começava, mais uma vez. Entrei à frente, depois o meu pai, o meu avô mais devagar, sempre no escuro, até a porta se fechar, sem ninguém lhe tocar. Só então a luz, mil velas acesas, sem perceber porquê. Nesse segundo vi, escadas sem fim, portas, mesas de trabalho. Só depois reparei, que as paredes, todas as paredes, não estavam pintadas, nem forradas a papel, mas sim tapadas, de forma perfeita, por milhares, milhões, por livros que não era possível contar. O meu pai esperou, aguardou uns minutos antes de falar, depois do meu avô anuir. Contou-me a história, que também era a minha, de todos os que ali tinham entrado, do tesouro que guardavam, escondido, mas que deveria crescer, porque sempre haveria espaço, um lugar vazio numa estante, à espera de outro livro, de mais histórias. Seria essa a minha tarefa, como tinha sido de tantos antes de mim, a partir daquele dia. Lembro-me de olhar para os dois homens ao meu lado, principalmente para o meu avô, duas vezes pai, mais curvado, apoiado numa bengala escura, que o afastava do chão. Lembro-me de ele me começar a explicar, sem pedir desculpa, que eu seria como eles, uma maldição que não era verdadeira, só aos olhos dos outros. Um dever, que não podia ser leve, e só por isso pesado. Ouvi-o em silêncio, em respeito e amor, ouvi o que já sabia, desde que a porta se fechara, quando senti a pressão nas costas, pela primeira vez.
quarta-feira, julho 30, 2008
O Vento
Quando Ana chegou reconheceu o cheiro do chão. Era uma mistura de ervas secas com pequenas flores. Em miúda vendia-as em segredo, nas brincadeiras com o irmão, no terraço da casa dos avós. Alugou uma casa perto do mar, com janelas azuis e fechos ferrugentos. Deitada na cama conseguia ouvir as ondas e todos os dias jurava que sentia o seu gosto. Os dias eram todos iguais. Um livro lido em cima da colcha branca, morangos e amoras comidos com cuidado, um dormir sem horas, sem contar. Ao fim da tarde espreguiçava-se na rede, dava balanço na parede caiada, pintava os pés de branco. Antes de anoitecer saía para respirar, somava cada dia ao anterior, prometia não ter pressa. No primeiro dia reparou num velho sentado no miradouro, fingiu que não o viu, mas sentiu-o antes do resto. Inventou uma brincadeira, um desafio, conseguir não pensar nele durante um dia, depois dois, até onde fosse capaz. Desistiu, ele estava lá, mesmo que ela não olhasse. Sentava-se num banco feito nas rochas, a um passo do vazio. O velho era cego, a senhora que a recebera tinha-lhe contado que ele era cego, disse-o várias vezes, como se tivesse medo que ela se fosse esquecer, depois benzeu-se e saiu. Ana ficou a pensar, sem coragem de perguntar.
— Dizem que o senhor é cego.
Ele inclinou-se para a frente, de cajado a baloiçar entre as mãos.
— Dizem o que eu lhes disse, mais não sabem.
O banco onde o velho estava sentado era feito de rocha cinzenta, esculpido na forma de muitos anos. Ana sentou-se, sentiu a pedra, um aconchego ligeiro, afastado em silêncio.
— E o que é que eles não sabem? — perguntou ela sem tremer a voz.
O velho enfrentou-a no escuro, como se conseguisse ver.
— Perguntas sem saber criança — disse ele.
Ela sufocou as palavras. Queria saber, precisava de saber. O velho contou a sua história.
Sempre amara a mulher, que tinha morrido há dois anos, um desejo que não esquecia. Ela morrera a sorrir, de mãos dadas nas dele, mãos que só podia sentir. Depois veio o fim, o resto de uma vida, uma espera contada, minuto a minuto, em cada bater do coração, no sangue que corria lento. Tinham começado a namorar em miúdos, antes de serem diferentes, antes de respirarem mais depressa. Casaram em Maio, num dia quente, sem nuvens no céu. Adormeceram de olhos no céu, sem desejos para pedir, agarrados com força, pois o vento tenta a sua sorte, leva-nos se não temos cuidado. Um ano, as noites na praia só duraram um ano. Um dia ela não acordou, ardia em febre, pintava os lençóis de vermelho, sem conseguir falar. O velho, nesse tempo um miúdo, subiu ao penhasco mais alto, gritou, suplicou um favor, ofereceu tudo o que tinha, mesmo o que não devia. Nunca descobriu quem respondeu, se o céu ou o inferno, nem branco nem vermelho. A alma foi recusada, não pode ser vendida, não pode ser trocada. Escolheria um dos sentidos, uma parte do mundo, que deveria perder. A resposta foi rápida. Sentiu o cheiro do mar, o barulho das ondas, o sabor a sal, o calor da pele dela nas mãos. Fechou os olhos, no último raio de sol, e respondeu sem querer. Encontraram-no assustado, demoraram a perceber, na pressa de contar. Ela tinha acordado, com a face rosada, mas de sorriso ainda cansado. Pediu para a levarem à janela, para ver o pôr-do-sol.
Ana ficou a olhar para o velho, tentando adivinhar o momento certo.
— Não foi... não foi por causa... ela melhorou sozinha, não foi?
— Sim, não fui eu.
— Mas então... porque é que ficou cego? — perguntou ela em desespero, como se tudo estivesse a acontecer outra vez. — Não faz sentido... não faz sentido.
O velho encostou o cajado à pedra, brincou com as mãos, fez desenhos no ar. Depois continuou.
— O meu pedido, o meu desejo... — disse ele devagar.
— Sim — disse ela ansiosa.
— Eu só pedi, implorei, que me fosse concedido um desejo.
Os olhos de Ana brilharam.
— Ela ficou melhor antes — disse ela, sem precisar de uma resposta.
— Sim, ficou.
Ana correu para casa. Fugiu do passado, de uma história que não era a sua. Durante uma semana não saiu de casa, tentou esquecer, arranjou mil desculpas, mil explicações. Teve vontade de desistir, de ir embora daquele lugar. Mas sabia que o velho estava lá fora, de olhos no mar, sem o poder ver. Sabia que ele esperava por ela, que confiava nela. Ainda não tinha acabado, sabia que ainda não tinha acabado.
— O que é que pediu? — perguntou ela, enquanto se sentava ao lado do velho.
— Desde miúdo, o sonho foi sempre o mesmo — disse ele a sorrir.
— Os sonhos são iguais para todos? — perguntou ela enrugando a testa.
Ele esperou um pouco, agarrou-lhe a mão direita, depois de a procurar.
— Qual é o teu nome?
— Ana, chamo-me Ana.
— Voar Ana, desde pequeno que queria voar — disse ele quase em sussurro.
Ela percebeu, e sentiu um aperto no peito.
— Para voar não é preciso ver, basta que alguém nos ajude, que alguém veja por nós — disse ela ao mesmo tempo que pensava. — Mas nunca o fez, pois não?
Ele sorriu.
— Eu nunca lhe contei, não podia contar, ela nunca me teria perdoado.
— Porquê?
— Porque não era a maneira dela. Um sacrifício. Um pacto com o mal ou com o bem. A certeza de sermos iguais, de não sermos melhores, de sermos um só. Ela nunca me teria perdoado, e eu não podia voar com mais ninguém. Às vezes, nas noites sem lua, quando o vento sopra forte, às vezes, aproximo-me do precipício, e finjo que é o vento que me segura. Mais não posso.
— E o anjo, o demónio, nunca mais o chamou, nunca mais gritou por ele? — perguntou ela, de coração apertado.
— Não, nunca mais. Mas ele aparece à noite, desde a primeira noite, todas as noites, invade os meus sonhos, seduz-me, diz-me que basta um sacrifício.
— Um sacrifico? — perguntou, tentando entender.
— Sim, de alguém que eu ame, de alguém que me ame. — Parou de falar e limpou as lágrimas com um lenço velho amarrotado. — Nem por um minuto Ana, nem por um único segundo, nunca hesitei. Sei que nunca mais vou ver, mas foi sempre uma tentação inútil, pois eu convenci-me, desde o primeiro dia, que morreria na escuridão.
Ana levantou-se e deu um passo até à beira da rocha, sentiu o vazio, o abismo por baixo dela. Então sorriu, escondeu as lágrimas e sorriu. Esticou um braço em direcção ao velho e inspirou fundo antes de o chamar.
— Eu acredito, eu acredito em si. — As lágrimas começaram a cair, a descer pela cara, em direcção ao peito. — Dê-me a sua mão! Eu mostro-lhe o caminho.
Ele esperou uns segundos, antes de esticar a mão direita, de tocar ao de leve na mão dela. Ana atirou-se devagar para trás, fechou os olhos e esperou, até ao último momento esperou, por uma mão que se fechou.
A queda foi rápida, a dor desapareceu depressa, o corpo já não era o seu. Sentia apenas o gosto do sangue quente na boca, um ligeiro tremor, um frio que lhe roubava a visão, que mudava o mundo à sua volta, um mundo que ficava cada vez mais turvo. Conseguiu olhar para cima, ver uma silhueta de braços abertos, inclinada de uma forma impossível. Sorriu, uma última vez.
O velho ficou a olhar para a mão fechada, até o último raio de sol tocar em cada dedo que se abria, até acreditar, que conseguia ver. Abriu os braços e atirou-se contra o vento, uma última vez.
— Dizem que o senhor é cego.
Ele inclinou-se para a frente, de cajado a baloiçar entre as mãos.
— Dizem o que eu lhes disse, mais não sabem.
O banco onde o velho estava sentado era feito de rocha cinzenta, esculpido na forma de muitos anos. Ana sentou-se, sentiu a pedra, um aconchego ligeiro, afastado em silêncio.
— E o que é que eles não sabem? — perguntou ela sem tremer a voz.
O velho enfrentou-a no escuro, como se conseguisse ver.
— Perguntas sem saber criança — disse ele.
Ela sufocou as palavras. Queria saber, precisava de saber. O velho contou a sua história.
Sempre amara a mulher, que tinha morrido há dois anos, um desejo que não esquecia. Ela morrera a sorrir, de mãos dadas nas dele, mãos que só podia sentir. Depois veio o fim, o resto de uma vida, uma espera contada, minuto a minuto, em cada bater do coração, no sangue que corria lento. Tinham começado a namorar em miúdos, antes de serem diferentes, antes de respirarem mais depressa. Casaram em Maio, num dia quente, sem nuvens no céu. Adormeceram de olhos no céu, sem desejos para pedir, agarrados com força, pois o vento tenta a sua sorte, leva-nos se não temos cuidado. Um ano, as noites na praia só duraram um ano. Um dia ela não acordou, ardia em febre, pintava os lençóis de vermelho, sem conseguir falar. O velho, nesse tempo um miúdo, subiu ao penhasco mais alto, gritou, suplicou um favor, ofereceu tudo o que tinha, mesmo o que não devia. Nunca descobriu quem respondeu, se o céu ou o inferno, nem branco nem vermelho. A alma foi recusada, não pode ser vendida, não pode ser trocada. Escolheria um dos sentidos, uma parte do mundo, que deveria perder. A resposta foi rápida. Sentiu o cheiro do mar, o barulho das ondas, o sabor a sal, o calor da pele dela nas mãos. Fechou os olhos, no último raio de sol, e respondeu sem querer. Encontraram-no assustado, demoraram a perceber, na pressa de contar. Ela tinha acordado, com a face rosada, mas de sorriso ainda cansado. Pediu para a levarem à janela, para ver o pôr-do-sol.
Ana ficou a olhar para o velho, tentando adivinhar o momento certo.
— Não foi... não foi por causa... ela melhorou sozinha, não foi?
— Sim, não fui eu.
— Mas então... porque é que ficou cego? — perguntou ela em desespero, como se tudo estivesse a acontecer outra vez. — Não faz sentido... não faz sentido.
O velho encostou o cajado à pedra, brincou com as mãos, fez desenhos no ar. Depois continuou.
— O meu pedido, o meu desejo... — disse ele devagar.
— Sim — disse ela ansiosa.
— Eu só pedi, implorei, que me fosse concedido um desejo.
Os olhos de Ana brilharam.
— Ela ficou melhor antes — disse ela, sem precisar de uma resposta.
— Sim, ficou.
Ana correu para casa. Fugiu do passado, de uma história que não era a sua. Durante uma semana não saiu de casa, tentou esquecer, arranjou mil desculpas, mil explicações. Teve vontade de desistir, de ir embora daquele lugar. Mas sabia que o velho estava lá fora, de olhos no mar, sem o poder ver. Sabia que ele esperava por ela, que confiava nela. Ainda não tinha acabado, sabia que ainda não tinha acabado.
— O que é que pediu? — perguntou ela, enquanto se sentava ao lado do velho.
— Desde miúdo, o sonho foi sempre o mesmo — disse ele a sorrir.
— Os sonhos são iguais para todos? — perguntou ela enrugando a testa.
Ele esperou um pouco, agarrou-lhe a mão direita, depois de a procurar.
— Qual é o teu nome?
— Ana, chamo-me Ana.
— Voar Ana, desde pequeno que queria voar — disse ele quase em sussurro.
Ela percebeu, e sentiu um aperto no peito.
— Para voar não é preciso ver, basta que alguém nos ajude, que alguém veja por nós — disse ela ao mesmo tempo que pensava. — Mas nunca o fez, pois não?
Ele sorriu.
— Eu nunca lhe contei, não podia contar, ela nunca me teria perdoado.
— Porquê?
— Porque não era a maneira dela. Um sacrifício. Um pacto com o mal ou com o bem. A certeza de sermos iguais, de não sermos melhores, de sermos um só. Ela nunca me teria perdoado, e eu não podia voar com mais ninguém. Às vezes, nas noites sem lua, quando o vento sopra forte, às vezes, aproximo-me do precipício, e finjo que é o vento que me segura. Mais não posso.
— E o anjo, o demónio, nunca mais o chamou, nunca mais gritou por ele? — perguntou ela, de coração apertado.
— Não, nunca mais. Mas ele aparece à noite, desde a primeira noite, todas as noites, invade os meus sonhos, seduz-me, diz-me que basta um sacrifício.
— Um sacrifico? — perguntou, tentando entender.
— Sim, de alguém que eu ame, de alguém que me ame. — Parou de falar e limpou as lágrimas com um lenço velho amarrotado. — Nem por um minuto Ana, nem por um único segundo, nunca hesitei. Sei que nunca mais vou ver, mas foi sempre uma tentação inútil, pois eu convenci-me, desde o primeiro dia, que morreria na escuridão.
Ana levantou-se e deu um passo até à beira da rocha, sentiu o vazio, o abismo por baixo dela. Então sorriu, escondeu as lágrimas e sorriu. Esticou um braço em direcção ao velho e inspirou fundo antes de o chamar.
— Eu acredito, eu acredito em si. — As lágrimas começaram a cair, a descer pela cara, em direcção ao peito. — Dê-me a sua mão! Eu mostro-lhe o caminho.
Ele esperou uns segundos, antes de esticar a mão direita, de tocar ao de leve na mão dela. Ana atirou-se devagar para trás, fechou os olhos e esperou, até ao último momento esperou, por uma mão que se fechou.
A queda foi rápida, a dor desapareceu depressa, o corpo já não era o seu. Sentia apenas o gosto do sangue quente na boca, um ligeiro tremor, um frio que lhe roubava a visão, que mudava o mundo à sua volta, um mundo que ficava cada vez mais turvo. Conseguiu olhar para cima, ver uma silhueta de braços abertos, inclinada de uma forma impossível. Sorriu, uma última vez.
O velho ficou a olhar para a mão fechada, até o último raio de sol tocar em cada dedo que se abria, até acreditar, que conseguia ver. Abriu os braços e atirou-se contra o vento, uma última vez.
domingo, junho 08, 2008
Esquecer
Contei quatro degraus, quatro degraus cinzentos, gastos, rachados. Senti o vento nas costas e olhei à procura do carro. Tinha a certeza que o tinha deixado perto, de ter jogado com a sorte. Se arranjasse lugar à porta do trabalho o dia correria bem. Uma velha brincadeira, que nunca funcionava. Procurei mais de vinte minutos, fiz a rua para cima e para baixo várias vezes. Cansado, sentei-me num banco castanho. Lembrei-me de uma história antiga, um livro de ficção científica que tinha lido há muitos anos. Era um livro de contos, o primeiro era sobre um homem que um dia saía do emprego e se esquecia onde morava, como se chamava, quem era. No fim, perdido, sozinho, descobria que não era deste mundo, que as memórias esquecidas não eram dele, apenas decoradas. Ri-me, apesar do frio no estômago ri-me, sabia o meu nome, sabia onde morava, só não sabia do carro, mas tinha recordado a história do livro. Tirei o telefone do bolso do casaco para telefonar, por um breve segundo soube, mas esqueci-me para quem ia ligar. Não me lembrava se tinha alguma pessoa, se era casado, se estava alguém à minha espera. Senti-me sozinho. Lembrei-me de uns enormes olhos verdes, disse o nome dela num sussurro, senti o sabor dos lábios, o cheiro da pele. Podia contar todos os beijos que tínhamos trocado, um a um, podia desenhar as cores das camisolas que ela usava, mas não sabia quem me abraçava, quem me embalava antes de dormir. Tive medo de ir para casa, de encontrar alguém que não conhecia, de estar a enlouquecer. Tinha uma aliança na mão esquerda, tirei-a do dedo, segurei-a durante um segundo, depois procurei um nome. Uma data, a aliança só tinha gravada uma data, que não me dizia nada, que me deixava assustado. Esqueci-me de quantos anos tinha, procurei algum sinal nas mãos, marcas de tempo, feridas, a cor dos pêlos. Lembrei-me de um tronco velho, do musgo na madeira, lembrei-me dos insectos na lama, de os guardar dentro de um frasquinho, da minha mãe a ralhar. Lembrei-me da minha mãe, do nome, da cara, da voz, de soprar cinco velas num bolo. Depois esqueci-me, como se num momento corresse no riacho, e no seguinte estivesse perdido. Levantei-me, vi o meu reflexo no vidro de um carro, não era novo, não era velho, continuava a saber quem era, sabia o meu nome, sabia onde trabalhava, o nome de todos no escritório, tive vontade de voltar atrás, de perguntar, de pedir ajuda. Não tive coragem. Esqueci-me do meu pai, pensei outra vez na minha mãe e descobri que não tinha pai, não tinha mãos fortes a segurarem-me, de correr atrás dele, de jogar à bola. Não me lembrava da barba por fazer, do fumo dos cigarros. Lembrei-me da montanha, sorri, tive vontade de chorar, lembrei-me de estar por cima das nuvens, do verde, do barulho da água, do vazio, do medo das alturas, de uma mão que apertava a minha. Abrimos os braços, lembrei-me de abrirmos os braços, de gritar contra o vento, de rir, de sentir que podia voar, de amar. Lembrei-me de mil músicas, da chuva, de todos os dias de chuva, da praia à noite, dos barulhos da floresta, da lua, senti todos os cortes, todas as feridas, a dor em todos os momentos, lembrei-me de todas as vezes que ri, do cheiro da comida ao lume, dos meus avós, da casa fechada, do medo dos fantasmas, de correr, dos pés descalços na areia, dos castelos, senti o sol na cara, as sombras no chão, o céu cor-de-laranja, as histórias, os sítios secretos, o desejo de viajar, de fugir, o medo da tempestade, os arrepios, o coração a bater mais depressa, o Inverno que por fim chegava. Esqueci-me, esqueci-me de tudo, de mim, dos outros, senti o corpo a cair, a visão a ficar turva, que ia perder os sentidos. Sorri, antes de adormecer, desejei estar a morrer, sem saber, mas por tudo sentir, sorri, antes de os olhos fechar, voltei à montanha, ao riacho, aos olhos verdes, aos livros, ao silêncio...
quinta-feira, maio 29, 2008
Time Flies
Fiquei sozinha, acabei por ficar sozinha, mesmo antes de o saber. Deixei crescer o cabelo, o cabelo cinzento que sempre admirei na minha avó, o cabelo que as mulheres sós não pintam, que deixam solto e seco, para voar contra a cara, para magoar a pele fina. Não quis gatos, os gatos são para mulheres divorciadas. Eu nunca cheguei a casar, porque não soube, porque não vi, porque era tarde, porque não olhei para trás, aguentei a dor na barriga. Chamo-me Teresa, nome de mãe, da mãe que não fui, antes de secar, de já não poder. Uso sapatos rasos, digo mal dos outros, de inveja de não os ter, de não saber ensinar as pernas, uso sapatos às cores, só para irritar quem olha, para explicar quem sou, a quem não quer saber. Tenho um lenço com muitas cores, juro que já as tentei contar, mas o vento mistura-as, provoca-me, faz-me rir, por vezes sorrir.
Desci para a praia descalça, senti o verão a chegar, escondido no frio da manhã. Trazia na cabeça o meu chapéu de palha, daqueles que parecem ir desfazer-se a qualquer momento, que fazem sombras engraçadas, que gosto de contar, de tocar com os dedos, de me lembrar do piano. Perdi-me antes de o ver, um segundo antes de o ver, para voltar a mim. Arrisquei algumas palavras.
— Olá, eu sou a Teresa.
O homem virou-se devagar, sem pressa do conhecer. Parecia saborear.
— Olá Teresa, eu sou o Luís.
O silêncio voltou. O Luís olhava o horizonte, dividia o céu com um pincel na mão. Dei um passo à frente, não consegui dar mais, mas consegui ver o quadro que ele pintava. Ele explicou, antes de eu perguntar.
— Estou a pintar a noite.
— O que explica o preto — disse eu sem rir.
Ele murmurou qualquer coisa, antes de se virar.
— Na verdade não é preto, eu sei que parece, mas tem uma gota de tinta branca.
Olhou para o quadro durante uns segundos, acho que a decidir. Depois continuou.
— Consegues ver?
Eu só via preto. Esforçava-me para ver o que ele me queria mostrar, mas só via preto, não percebia a diferença. Falei irritada.
— Deves ter posto mesmo muito pouco branco.
Ele riu-se, encheu-me com o seu riso, esticou a mão para a minha. Leu-me outra vez, pensou antes de mim.
— À noite não consigo, está demasiado escuro, venho cá só para decorar, para mais tarde me lembrar, depois volto de manhã, tento acertar com o branco.
Ri-me antes dele acabar.
Sinto o tempo a voar, dor nos braços, dificuldade em respirar, a ansiedade a crescer. Com o tempo aprendi a lutar, crises do nada, medo de morrer, de não aguentar o segundo a seguir, em longos minutos. Aprendi a estremecer, um arrepio de frio, para me fazer esquecer, para não cair. Mas vivo assustada, feliz e amarga, mas assustada. Gostava de embalar, de cantar baixinho, afastar o diabo, as bruxas más, para a noite ir embora, para correr depressa.
Sentámo-nos na areia. Ele tinha mãos perfeitas, brancas, pequenas, velhas, contavam histórias. Agarrou as minhas, olhou-me nos olhos.
— És uma boa mãe.
Não contive as lágrimas, sem ficar zangada.
— Mas eu nunca... eu não tenho filhos.
— Eu sei. Vejo a forma em ti, mas tenho a certeza, és uma boa mãe.
Não lutei com ele, fechei os olhos e ouvi. Ele respirou fundo antes de falar.
— A minha mãe morreu o ano passado. Uma vida desgraçada, feita de dor, de muita dor, de sangue nos lábios, mordidos durante anos, demasiados anos. Acabou louca, esteve vinte anos internada, sem dizer uma única palavra, a olhar sempre para o mesmo sítio na parede. Nunca percebi para onde ela olhava, procurei, cheguei a levar uma lupa, mas não descobri nada, só o branco da parede, lisa, sem uma imperfeição. Desisti, com o tempo desisti.
— Achas que sofreu? — perguntei sem angústia.
— Morreu numa manhã, fechou os olhos, apenas fechou os olhos, não se despediu, não gritou, não chorou. Num segundo respirou, no outro já não.
— E tu? — perguntei.
Vi na cara dele, o sorriso mais bonito, o mais bonito que alguém alguma vez sorriu.
— Eu acordo todas as manhãs, abro os olhos e lembro-me dela. Todos os dias Teresa. É a primeira coisa em que penso. Lembro-me de uma tarde, quando tinha uns cinco ou seis anos, de estar com a cabeça no colo dela, de ela me estar a secar o cabelo, sinto o cheiro a queimado do secador, sinto o cheiro dela, das mãos, de sabão, do suor, da pele arrepiada. E choro, choro todos os dias, por este sonho repetido, que me aconchega, para sempre dentro de mim.
Olhei para cima para o quadro, procurei no meio do preto. Falei devagar, quase a cantar.
— Acho que está ali uma parte mais clara.
Ele riu-se. Depois pensou, esperou, escolheu as palavras.
— És uma menina assustada. É por isso que consegues ver.
Fechei os olhos, apertei-os muito, antes de os voltar a abrir.
Fiquei sozinha, acabei por ficar sozinha, aprendi a ficar sozinha. Tenho uma mão ao meu lado, que às vezes agarro, aperto até doer. Mas no meu mundo só estou eu, feliz, magoada, irritada, triste, risonha, inspirada, serena. O medo vem, chega sem cuidado, rebenta em mim, parte-me por dentro, rasga-me o corpo. Olho outra vez para a mão, para a mão esticada ao meu lado, hesito, espero, antes de a aceitar, porque sei que não preciso. No céu aparecem mil estrelas, que riscam a noite. E peço um desejo, só desta vez, ser a única a vê-las.
Desci para a praia descalça, senti o verão a chegar, escondido no frio da manhã. Trazia na cabeça o meu chapéu de palha, daqueles que parecem ir desfazer-se a qualquer momento, que fazem sombras engraçadas, que gosto de contar, de tocar com os dedos, de me lembrar do piano. Perdi-me antes de o ver, um segundo antes de o ver, para voltar a mim. Arrisquei algumas palavras.
— Olá, eu sou a Teresa.
O homem virou-se devagar, sem pressa do conhecer. Parecia saborear.
— Olá Teresa, eu sou o Luís.
O silêncio voltou. O Luís olhava o horizonte, dividia o céu com um pincel na mão. Dei um passo à frente, não consegui dar mais, mas consegui ver o quadro que ele pintava. Ele explicou, antes de eu perguntar.
— Estou a pintar a noite.
— O que explica o preto — disse eu sem rir.
Ele murmurou qualquer coisa, antes de se virar.
— Na verdade não é preto, eu sei que parece, mas tem uma gota de tinta branca.
Olhou para o quadro durante uns segundos, acho que a decidir. Depois continuou.
— Consegues ver?
Eu só via preto. Esforçava-me para ver o que ele me queria mostrar, mas só via preto, não percebia a diferença. Falei irritada.
— Deves ter posto mesmo muito pouco branco.
Ele riu-se, encheu-me com o seu riso, esticou a mão para a minha. Leu-me outra vez, pensou antes de mim.
— À noite não consigo, está demasiado escuro, venho cá só para decorar, para mais tarde me lembrar, depois volto de manhã, tento acertar com o branco.
Ri-me antes dele acabar.
Sinto o tempo a voar, dor nos braços, dificuldade em respirar, a ansiedade a crescer. Com o tempo aprendi a lutar, crises do nada, medo de morrer, de não aguentar o segundo a seguir, em longos minutos. Aprendi a estremecer, um arrepio de frio, para me fazer esquecer, para não cair. Mas vivo assustada, feliz e amarga, mas assustada. Gostava de embalar, de cantar baixinho, afastar o diabo, as bruxas más, para a noite ir embora, para correr depressa.
Sentámo-nos na areia. Ele tinha mãos perfeitas, brancas, pequenas, velhas, contavam histórias. Agarrou as minhas, olhou-me nos olhos.
— És uma boa mãe.
Não contive as lágrimas, sem ficar zangada.
— Mas eu nunca... eu não tenho filhos.
— Eu sei. Vejo a forma em ti, mas tenho a certeza, és uma boa mãe.
Não lutei com ele, fechei os olhos e ouvi. Ele respirou fundo antes de falar.
— A minha mãe morreu o ano passado. Uma vida desgraçada, feita de dor, de muita dor, de sangue nos lábios, mordidos durante anos, demasiados anos. Acabou louca, esteve vinte anos internada, sem dizer uma única palavra, a olhar sempre para o mesmo sítio na parede. Nunca percebi para onde ela olhava, procurei, cheguei a levar uma lupa, mas não descobri nada, só o branco da parede, lisa, sem uma imperfeição. Desisti, com o tempo desisti.
— Achas que sofreu? — perguntei sem angústia.
— Morreu numa manhã, fechou os olhos, apenas fechou os olhos, não se despediu, não gritou, não chorou. Num segundo respirou, no outro já não.
— E tu? — perguntei.
Vi na cara dele, o sorriso mais bonito, o mais bonito que alguém alguma vez sorriu.
— Eu acordo todas as manhãs, abro os olhos e lembro-me dela. Todos os dias Teresa. É a primeira coisa em que penso. Lembro-me de uma tarde, quando tinha uns cinco ou seis anos, de estar com a cabeça no colo dela, de ela me estar a secar o cabelo, sinto o cheiro a queimado do secador, sinto o cheiro dela, das mãos, de sabão, do suor, da pele arrepiada. E choro, choro todos os dias, por este sonho repetido, que me aconchega, para sempre dentro de mim.
Olhei para cima para o quadro, procurei no meio do preto. Falei devagar, quase a cantar.
— Acho que está ali uma parte mais clara.
Ele riu-se. Depois pensou, esperou, escolheu as palavras.
— És uma menina assustada. É por isso que consegues ver.
Fechei os olhos, apertei-os muito, antes de os voltar a abrir.
Fiquei sozinha, acabei por ficar sozinha, aprendi a ficar sozinha. Tenho uma mão ao meu lado, que às vezes agarro, aperto até doer. Mas no meu mundo só estou eu, feliz, magoada, irritada, triste, risonha, inspirada, serena. O medo vem, chega sem cuidado, rebenta em mim, parte-me por dentro, rasga-me o corpo. Olho outra vez para a mão, para a mão esticada ao meu lado, hesito, espero, antes de a aceitar, porque sei que não preciso. No céu aparecem mil estrelas, que riscam a noite. E peço um desejo, só desta vez, ser a única a vê-las.
quarta-feira, março 19, 2008
Pai
Viro a cabeça ao ouvir o som de metal no chão. Um homem pragueja e pega no recipiente onde larga as moedas que apanha curvado. Outra pessoa passa a correr e as moedas voam de novo para longe. O homem amaldiçoa a sorte, o mundo, a chuva, sem perceber que está no caminho dos outros. Uma rapariga ajuda-o a procurar as moedas e ele não agradece. Afasto a imagem do meu pai e desço as escadas rolantes.
À espera do metro está um rapaz com um acordeão. É um quadro antigo, igual em tantas recordações, pele escura, dedos sujos, um pequeno cão que nunca cresce, nenhum dos dois cresce, uma garrafa de plástico cortada ao meio, um pedaço de cordel na boca do animal. O rapaz não vê ninguém, distraído com um jogo electrónico nas mãos. O brinquedo deve ter custado mais do que um dia de esmolas, mas ele não se importa. Tenho a certeza que o vai esconder, quando começar a pedir. Lembro-me outra vez do meu pai, não consigo esquecer.
Depois do apitar das portas ouço um cego. Conheço os cegos do metro todos de cor, separo-os em grupos, divido-os por cheiros, pela pena que sinto. Existe um que me irrita, por um dia ter falado mal a uma senhora, mesmo tendo razão. Reconheço-o depressa, jogo com o destino, digo que o dia me vai correr mal se ele me tocar. Ele não me vê, mas dá-me um encontrão quando passa por mim. Segue o seu caminho, mais escuro do que o meu.
A vida do meu pai sempre foi improvável, o Homem-Impossível, como eu lhe chamava, um super-herói imaginado. Um dia comprou um carro, ele comprava um carro novo todos os anos. Fui buscá-lo com ele, brinquei com os dedos na pintura creme, antes de reparar na matrícula. As duas primeiras letras eram as iniciais dele, os números o dia do aniversário. Vi os olhos do vendedor, vi demasiadas vezes aquele olhar. Todos os meses ia ao Bingo, sentava-se numas cadeiras vermelhas, que tinham sido vermelhas. Fazia sempre uma linha, sempre no segundo cartão da noite. Fingia que não acertava em mais nenhum número, de braços sobre a mesa, escondendo o jogo. Os empregados sabiam, calavam-se por simpatia, por pequenas gratificações, por medo. Um dia perguntei-lhe porque o fazia. Riu-se e disse que um dia iria perceber. Nunca percebi, o tempo passou e eu nunca percebi.
As histórias de guerra eram segredo, guardava-as no ar triste, na cara sempre contraída. Só não podia esconder as cicatrizes, seis riscos no rosto, três do lado esquerdo, mais três do lado direito. Contou-me, depois de choros e ameaças. Tinham disparado perto, seis balas que apenas o queimaram, que desenharam uma expressão. Tornou-se uma lenda, caminhava sempre à frente dos outros, que pisavam o mesmo caminho com cuidado. Nunca ia aos encontros de antigos combatentes, não mantinha contacto com aquela outra vida. Mas todos os anos, sempre no mesmo dia de Março, recebia um embrulho cheio de coisas esquisitas. Amuletos, pedaços de tecido camuflado, crucifixos, fotografias de homens feridos. Não perguntei, nunca tive coragem de perguntar.
Volto ao homem que corria atrás das moedas. Imagino-o o dia todo a repetir as mesmas palavras, raiva, dor, ajuda, fome, angústia. Vejo a cidade cinzenta, toda em tons de cinzento. Pergunto como é que as pessoas mudam, porque me parecem todas iguais. À minha frente um ecrã mostra a hora e o dia. Sorrio pelo impossível, porque sempre herdamos algo, mesmo o que fica escondido.
Escolho a chuva e peço três desejos, que o calor que sinto seja o mesmo, que o meu choro seja igual, que um dia se juntem num só.
À espera do metro está um rapaz com um acordeão. É um quadro antigo, igual em tantas recordações, pele escura, dedos sujos, um pequeno cão que nunca cresce, nenhum dos dois cresce, uma garrafa de plástico cortada ao meio, um pedaço de cordel na boca do animal. O rapaz não vê ninguém, distraído com um jogo electrónico nas mãos. O brinquedo deve ter custado mais do que um dia de esmolas, mas ele não se importa. Tenho a certeza que o vai esconder, quando começar a pedir. Lembro-me outra vez do meu pai, não consigo esquecer.
Depois do apitar das portas ouço um cego. Conheço os cegos do metro todos de cor, separo-os em grupos, divido-os por cheiros, pela pena que sinto. Existe um que me irrita, por um dia ter falado mal a uma senhora, mesmo tendo razão. Reconheço-o depressa, jogo com o destino, digo que o dia me vai correr mal se ele me tocar. Ele não me vê, mas dá-me um encontrão quando passa por mim. Segue o seu caminho, mais escuro do que o meu.
A vida do meu pai sempre foi improvável, o Homem-Impossível, como eu lhe chamava, um super-herói imaginado. Um dia comprou um carro, ele comprava um carro novo todos os anos. Fui buscá-lo com ele, brinquei com os dedos na pintura creme, antes de reparar na matrícula. As duas primeiras letras eram as iniciais dele, os números o dia do aniversário. Vi os olhos do vendedor, vi demasiadas vezes aquele olhar. Todos os meses ia ao Bingo, sentava-se numas cadeiras vermelhas, que tinham sido vermelhas. Fazia sempre uma linha, sempre no segundo cartão da noite. Fingia que não acertava em mais nenhum número, de braços sobre a mesa, escondendo o jogo. Os empregados sabiam, calavam-se por simpatia, por pequenas gratificações, por medo. Um dia perguntei-lhe porque o fazia. Riu-se e disse que um dia iria perceber. Nunca percebi, o tempo passou e eu nunca percebi.
As histórias de guerra eram segredo, guardava-as no ar triste, na cara sempre contraída. Só não podia esconder as cicatrizes, seis riscos no rosto, três do lado esquerdo, mais três do lado direito. Contou-me, depois de choros e ameaças. Tinham disparado perto, seis balas que apenas o queimaram, que desenharam uma expressão. Tornou-se uma lenda, caminhava sempre à frente dos outros, que pisavam o mesmo caminho com cuidado. Nunca ia aos encontros de antigos combatentes, não mantinha contacto com aquela outra vida. Mas todos os anos, sempre no mesmo dia de Março, recebia um embrulho cheio de coisas esquisitas. Amuletos, pedaços de tecido camuflado, crucifixos, fotografias de homens feridos. Não perguntei, nunca tive coragem de perguntar.
Volto ao homem que corria atrás das moedas. Imagino-o o dia todo a repetir as mesmas palavras, raiva, dor, ajuda, fome, angústia. Vejo a cidade cinzenta, toda em tons de cinzento. Pergunto como é que as pessoas mudam, porque me parecem todas iguais. À minha frente um ecrã mostra a hora e o dia. Sorrio pelo impossível, porque sempre herdamos algo, mesmo o que fica escondido.
Escolho a chuva e peço três desejos, que o calor que sinto seja o mesmo, que o meu choro seja igual, que um dia se juntem num só.
quinta-feira, fevereiro 21, 2008
Olhos Tristes
amo-te
porque não sei o que sinto
sem saber se te quero
porque sei que te tenho
sem te poder tocar
em todos os dias de chuva
no frio que me abraça
de todas as noites sem fim
— Quando é que escreveste isto? — perguntou ela, disfarçando os olhos tristes.
— Não sei... Ontem... Há uns anos... Parece-me que o escrevo desde sempre.
Maria sentou-se no sofá e puxou João para ela.
— Este amor... Ela existiu?
— Não te sei responder Maria, não tenho a certeza, já não tenho a certeza de nada.
Maria suspirou, sentido o calor de um ombro, embalado no seu.
— Alguma vez te escreveram uma carta de amor? — perguntou ele, com um ar envergonhado.
— Hum... Acho que não. Não, não me lembro de nenhuma. Triste, não é? Tu recebeste?
— Quando era miúdo — respondeu orgulhoso.
— Conta-me!
João deitou a cabeça no colo de Maria, esperou antes de começar a falar, como se primeiro tivesse de sentir.
— Eu tinha nove anos, acho que ela era um ano mais nova. Andávamos os dois na ginástica, ela costumava rir-se para mim. Como sempre não tive coragem de lhe falar, pedi ao irmão dela que o fizesse, que lhe contasse que gostava dela.
— Um emissário — brincou Maria.
— Sim. Uns dias mais tarde fiquei doente, uma semana em casa com anginas. Já não me lembro como é que ela soube, nós nem éramos da mesma turma. Mas um dia o meu irmão trouxe-me uma carta.
— E o que dizia? — perguntou Maria impaciente.
— Que sabia que eu gostava dela, que também gostava de mim, que queria ser minha namorada, coisas de miúdos.
— Que lindo! — disse ela num tom brincalhão.
— Não gozes — disse ele zangado, sem o estar.
— Foi a tua primeira namorada?
— Sim, foi.
— E?
— O que queres saber?
— Vá lá, não sejas assim. Conta-me! O que aconteceu depois?
João esperou outra vez, antes de recomeçar.
— Nada, eu passava por ela e apenas sorria, nem sequer parava. Um dia descobri que ela já tinha outro namorado, devo ter sido o último a saber. Mas também eu nem me aproximava, não tinha coragem. Há coisas que sempre foram assim, que hão-de ser sempre iguais.
Maria passou a mão pelo cabelo curto de João, aconchegou-o nos seus braços.
— Ela não te merecia — disse a rir, um riso que o contagiou.
— Sabes — disse, de olhos no tecto —, durante algum tempo fiquei triste, mas acho que foi o amor mais perfeito que já tive, tão puro que não precisava de quase nada. Não havia o tocar, o cheiro, a roupa entre os dedos, para mim bastavam as palavras que ela escreveu, de saber que gostava de mim. O resto era demasiado real, e eu ainda não sabia como lidar com isso, percebes?
— Sim — respondeu Maria. — E a carta, sabes onde está?
— Não, não sei, apesar de a ter guardado durante muito tempo.
— Estás a brincar — disse ela de olhos muito abertos.
— Não. Durante anos guardei-a a numa gaveta de uma escrivaninha que havia no meu quarto. Lia-a imensas vezes, tantas que o papel começou a rasgar-se nos sítios onde estava dobrado. Gosto de pensar que se desfez em pó, que um dia lhe toquei e as palavras desapareceram à frente dos meus olhos.
— Só tu, só mesmo tu — disse ela a sorrir. — E a rapariga? Continuaste a fugir dela?
— Sim, continuei — disse ele, enquanto tapava a cara com as mãos. — Mas a história não acaba aqui.
— Não? — perguntou ela intrigada.
— Não. Se o mundo, se a vida fizesse sentido, nunca mais a tinha visto, ou se calhar tínhamos vivido um romance trágico, um amor como os dos livros.
Maria conteve a curiosidade, deixou-o continuar.
— Um dia encontrei-a numa festa, acho que devia ter uns dezasseis anos. Nunca mais tínhamos falado, se é que alguma vez o fizemos. Eu pouco sabia dela.
— E o que aconteceu?
— Ela veio chamar-me para dançar, mais do que uma vez. Quando dei por mim estava mais perto do que alguma vez tinha estado. Senti o calor dela na minha cara, senti-a a respirar, senti o corpo junto ao meu. E por um momento, tudo à nossa volta desapareceu, só havia a música, e nós dois a rodar. Então aproximei os meus lábios dos dela devagar, tão perto que ela me beijou. Um beijo que soube a medo.
— A medo? — perguntou Maria.
— Sim, a medo. Não sei explicar melhor. Foi um momento mágico, mas havia algo, alguma coisa que eu não cheguei a perceber. Se calhar foi só de já não termos nove anos, ou então outra coisa qualquer. Não sei, não sei o que foi.
— Viste-a mais alguma vez?
— Sim, nesse mesmo dia, à noite. Não tive coragem de lhe dizer nada, nem sei se queria. Depois disso nunca mais a vi.
Maria ficou pensativa.
— Esse beijo, esse encontro quando já eras mais velho, não faz sentido. Isso que contaste não faz sentido.
— Eu sei Maria. Não penso muitas vezes nisto, não sei porquê esqueço-me desta história, mas sim, foi estranho.
Maria levantou-se, obrigando João a sair do seu colo.
— Bolas, tenho que ir comer um chocolate, queres? — perguntou ela, tentando segurar o riso.
João sentiu um arrepio, um sabor na boca, que desaparecia devagar. Depois riu-se também, e esqueceu-se outra vez.
— Sim, também quero chocolate.
porque não sei o que sinto
sem saber se te quero
porque sei que te tenho
sem te poder tocar
em todos os dias de chuva
no frio que me abraça
de todas as noites sem fim
— Quando é que escreveste isto? — perguntou ela, disfarçando os olhos tristes.
— Não sei... Ontem... Há uns anos... Parece-me que o escrevo desde sempre.
Maria sentou-se no sofá e puxou João para ela.
— Este amor... Ela existiu?
— Não te sei responder Maria, não tenho a certeza, já não tenho a certeza de nada.
Maria suspirou, sentido o calor de um ombro, embalado no seu.
— Alguma vez te escreveram uma carta de amor? — perguntou ele, com um ar envergonhado.
— Hum... Acho que não. Não, não me lembro de nenhuma. Triste, não é? Tu recebeste?
— Quando era miúdo — respondeu orgulhoso.
— Conta-me!
João deitou a cabeça no colo de Maria, esperou antes de começar a falar, como se primeiro tivesse de sentir.
— Eu tinha nove anos, acho que ela era um ano mais nova. Andávamos os dois na ginástica, ela costumava rir-se para mim. Como sempre não tive coragem de lhe falar, pedi ao irmão dela que o fizesse, que lhe contasse que gostava dela.
— Um emissário — brincou Maria.
— Sim. Uns dias mais tarde fiquei doente, uma semana em casa com anginas. Já não me lembro como é que ela soube, nós nem éramos da mesma turma. Mas um dia o meu irmão trouxe-me uma carta.
— E o que dizia? — perguntou Maria impaciente.
— Que sabia que eu gostava dela, que também gostava de mim, que queria ser minha namorada, coisas de miúdos.
— Que lindo! — disse ela num tom brincalhão.
— Não gozes — disse ele zangado, sem o estar.
— Foi a tua primeira namorada?
— Sim, foi.
— E?
— O que queres saber?
— Vá lá, não sejas assim. Conta-me! O que aconteceu depois?
João esperou outra vez, antes de recomeçar.
— Nada, eu passava por ela e apenas sorria, nem sequer parava. Um dia descobri que ela já tinha outro namorado, devo ter sido o último a saber. Mas também eu nem me aproximava, não tinha coragem. Há coisas que sempre foram assim, que hão-de ser sempre iguais.
Maria passou a mão pelo cabelo curto de João, aconchegou-o nos seus braços.
— Ela não te merecia — disse a rir, um riso que o contagiou.
— Sabes — disse, de olhos no tecto —, durante algum tempo fiquei triste, mas acho que foi o amor mais perfeito que já tive, tão puro que não precisava de quase nada. Não havia o tocar, o cheiro, a roupa entre os dedos, para mim bastavam as palavras que ela escreveu, de saber que gostava de mim. O resto era demasiado real, e eu ainda não sabia como lidar com isso, percebes?
— Sim — respondeu Maria. — E a carta, sabes onde está?
— Não, não sei, apesar de a ter guardado durante muito tempo.
— Estás a brincar — disse ela de olhos muito abertos.
— Não. Durante anos guardei-a a numa gaveta de uma escrivaninha que havia no meu quarto. Lia-a imensas vezes, tantas que o papel começou a rasgar-se nos sítios onde estava dobrado. Gosto de pensar que se desfez em pó, que um dia lhe toquei e as palavras desapareceram à frente dos meus olhos.
— Só tu, só mesmo tu — disse ela a sorrir. — E a rapariga? Continuaste a fugir dela?
— Sim, continuei — disse ele, enquanto tapava a cara com as mãos. — Mas a história não acaba aqui.
— Não? — perguntou ela intrigada.
— Não. Se o mundo, se a vida fizesse sentido, nunca mais a tinha visto, ou se calhar tínhamos vivido um romance trágico, um amor como os dos livros.
Maria conteve a curiosidade, deixou-o continuar.
— Um dia encontrei-a numa festa, acho que devia ter uns dezasseis anos. Nunca mais tínhamos falado, se é que alguma vez o fizemos. Eu pouco sabia dela.
— E o que aconteceu?
— Ela veio chamar-me para dançar, mais do que uma vez. Quando dei por mim estava mais perto do que alguma vez tinha estado. Senti o calor dela na minha cara, senti-a a respirar, senti o corpo junto ao meu. E por um momento, tudo à nossa volta desapareceu, só havia a música, e nós dois a rodar. Então aproximei os meus lábios dos dela devagar, tão perto que ela me beijou. Um beijo que soube a medo.
— A medo? — perguntou Maria.
— Sim, a medo. Não sei explicar melhor. Foi um momento mágico, mas havia algo, alguma coisa que eu não cheguei a perceber. Se calhar foi só de já não termos nove anos, ou então outra coisa qualquer. Não sei, não sei o que foi.
— Viste-a mais alguma vez?
— Sim, nesse mesmo dia, à noite. Não tive coragem de lhe dizer nada, nem sei se queria. Depois disso nunca mais a vi.
Maria ficou pensativa.
— Esse beijo, esse encontro quando já eras mais velho, não faz sentido. Isso que contaste não faz sentido.
— Eu sei Maria. Não penso muitas vezes nisto, não sei porquê esqueço-me desta história, mas sim, foi estranho.
Maria levantou-se, obrigando João a sair do seu colo.
— Bolas, tenho que ir comer um chocolate, queres? — perguntou ela, tentando segurar o riso.
João sentiu um arrepio, um sabor na boca, que desaparecia devagar. Depois riu-se também, e esqueceu-se outra vez.
— Sim, também quero chocolate.
terça-feira, janeiro 22, 2008
Mudança
Desde que tinham entrado no carro Margarida estava calada, sempre com a cabeça encostada ao vidro. Rui repetia em voz baixa o convite que não tinha planeado, tentava perceber o que queria, entender o desejo, a falta de calor.
— Para onde estás a olhar? — perguntou quase irritado.
— Estou a contar as luzes ao longe — respondeu ela sem virar a cara. — Não me digas que nunca o fizeste.
— Quando era criança — disse pensativo —, agora esqueço-me, esqueço-me de o fazer.
Margarida endireitou-se no banco.
— Porque é que me pediste para vir contigo? Nós acabámos de nos conhecer.
— Porque é que aceitaste? — perguntou ele.
— Disseste que me mostravas um sítio secreto, como podia resistir?
Rui acendeu um cigarro, inspirou-o lentamente e ofereceu-o de dedos esticados. Ela recusou. Ele respondeu sem tirar os olhos da estrada.
— Soube no momento em que te vi — disse, enquanto mudava a música. — Quis perguntar-te logo, ainda não tinha ouvido sequer a tua voz.
Margarida não respondeu e virou-se outra vez para a noite.
A areia era grossa, daquela que não se solta da pele. Os dois olhavam o céu deitados de barriga para cima. Margarida tentava lembrar-se do nome das estrelas, mas tinha sido há demasiado tempo. Deitou-se de lado antes de começar a falar.
— Quando é que é suposto começar a cena romântica? — perguntou num tom divertido.
Rui desatou a rir.
— Não é suposto Margarida, acredita que não é suposto — respondeu.
— Qual é a tua história? — perguntou ela com um ar muito sério.
Rui voltou atrás, a um livro de banda desenhada que lera quando tinha treze ou catorze anos. No alto de um prédio um homem rezava, pedia perdão pelo que ia fazer, olhava os carros lá em baixo e ganhava coragem. No último momento arrependia-se, desejava viver, abraçar a mulher, proteger os filhos ainda pequenos. Mas o vento não o ouvia, empurrava-o para o vazio, quase sem tempo para gritar. O livro acabava em tons de vermelho, sobre a neve que cobria a cidade.
— Eu trabalhei no metro — disse ele de repente.
— E? Não estás à espera que eu diga nada, pois não? Para mim é um trabalho como outro qualquer.
Era a brusquidão dela que o atraía.
— Posso continuar? — perguntou, fingindo estar zangado.
— Sim, desculpa — disse ela envergonhada.
— Um dia atirou-se um homem para a linha, mesmo à frente do metro. — Fez uma pausa antes de continuar. — Eu não consegui parar o metro, não dava para parar.
Margarida agarrou as mãos dele, estavam suadas e frias.
— Rui, tens a certeza que queres falar nisto?
Ele baixou a cabeça e continuou.
— Tiveram de me tirar de dentro da carruagem em braços. Fiquei paralisado, na expressão do homem que saltou, nos olhos dele nos meus. — Fez outra pausa, para recuperar o fôlego. — Foi a última coisa que ele viu, o meu olhar assustado.
Uma onda rebentou e encheu a noite de pequenos salpicos, de sal que se conseguia sentir lambendo as gotas nos lábios. Margarida juntou-se a ele, abraçou-o com força e esperou que ele continuasse.
— Dois anos! Dois anos Margarida! Foi o tempo que aguentei, todos os dias, estação a estação, sempre a olhar as pessoas, sempre a tentar adivinhar, sempre com um frio no estômago.
Outra onda rebentou com força, como se o mar sentisse o medo. Margarida desistiu de todas as palavras em que pensou, do consolo que não sabia como dar, encostou-se apenas a ele e ouviu o seu coração acelerado.
— E depois? — perguntou ela.
— Um dia conheci um senhor, um homem na paragem do autocarro. Ele meteu conversa, já nem me lembro sobre o quê, só sei que acabei a contar-lhe da minha prisão, dos meus dias sem fim. Acho que ele me fez lembrar o meu avô, ele conseguia sempre fazer conversa com as pessoas na rua.
— Conheço o género — disse ela a sorrir. — Mas e depois? Disse-te alguma coisa que te ajudou?
— Contou-me uma história, sobre uma briga que tinha tido com um amigo de infância. Uma coisa estranha, conheciam-se desde sempre, mas um dia começaram a discutir por causa de algo sem importância e acabaram à pancada. Quando os separaram praguejaram, disseram o que não sentiam, amaldiçoaram-se mutuamente.
— Homens! — disse ela com um ar de reprovação.
— Pois, homens — disse ele sem convicção. — Mas o outro, o que tinha sido amigo do senhor que me contou a história, parece que lhe lançou uma praga muito estranha.
— Como assim? — perguntou ela intrigada.
— Disse-lhe que no dia em que iria morrer, que nesse dia ouviria uma determinada música antes de morrer.
— Uma música? — perguntou ela, cada vez mais curiosa.
— Sim, uma música. Ele até me disse qual era, mas sinceramente não decorei.
Margarida ficou em silêncio. Pensou como reagiria a algo assim, como seria viver cada dia à espera de uma música, que anunciaria a sua morte.
— Sabes o que é que fez o senhor a quem foi lançada a praga? — perguntou ele.
— Não consigo imaginar — respondeu ela. — Passou a viver apavorado?
— Não! — disse ele com um ar triunfante. — Sabes o que é que ele fez? Eu não acreditei quando ele me contou.
— Conta-me Rui! — gritou ela impaciente.
— A partir desse dia, logo na manhã seguinte, a primeira coisa que ele passou a fazer foi ouvir a música, a que o devia matar.
— Bolas! — exclamou ela. — Ele enfrentou o medo, imagino até que o tenha feito desaparecer. Já o estou a ver, a colocar a agulha sobre o disco, um ritual que às tantas deixou de fazer sentido, que continuou só por hábito.
Rui olhou-a, escondendo o resto da história durante um minuto.
— Não Margarida, ele contou-me, que não havia um só dia, um único dia, em que não sentisse medo, quando a música começava a tocar.
Margarida sentiu a respiração de Rui, a vontade, o pavor de continuar sozinho. Sorriu antes de falar.
— Deixaste o emprego no metro no dia seguinte, não deixaste?
Rui esperou um segundo, para sentir que era verdade.
— Sim, desisti.
Margarida olhava as luzes outra vez. Inspirava o fumo que enchia o carro, que lhe lembrava as viagens com os pais, ela e a irmã à espera do cheiro de um fósforo riscado, da madeira a arder, do ardor na garganta. Encostou a cabeça no ombro de Rui e fechou os olhos. Deixou-se embalar pelo caminho.
— Para onde estás a olhar? — perguntou quase irritado.
— Estou a contar as luzes ao longe — respondeu ela sem virar a cara. — Não me digas que nunca o fizeste.
— Quando era criança — disse pensativo —, agora esqueço-me, esqueço-me de o fazer.
Margarida endireitou-se no banco.
— Porque é que me pediste para vir contigo? Nós acabámos de nos conhecer.
— Porque é que aceitaste? — perguntou ele.
— Disseste que me mostravas um sítio secreto, como podia resistir?
Rui acendeu um cigarro, inspirou-o lentamente e ofereceu-o de dedos esticados. Ela recusou. Ele respondeu sem tirar os olhos da estrada.
— Soube no momento em que te vi — disse, enquanto mudava a música. — Quis perguntar-te logo, ainda não tinha ouvido sequer a tua voz.
Margarida não respondeu e virou-se outra vez para a noite.
A areia era grossa, daquela que não se solta da pele. Os dois olhavam o céu deitados de barriga para cima. Margarida tentava lembrar-se do nome das estrelas, mas tinha sido há demasiado tempo. Deitou-se de lado antes de começar a falar.
— Quando é que é suposto começar a cena romântica? — perguntou num tom divertido.
Rui desatou a rir.
— Não é suposto Margarida, acredita que não é suposto — respondeu.
— Qual é a tua história? — perguntou ela com um ar muito sério.
Rui voltou atrás, a um livro de banda desenhada que lera quando tinha treze ou catorze anos. No alto de um prédio um homem rezava, pedia perdão pelo que ia fazer, olhava os carros lá em baixo e ganhava coragem. No último momento arrependia-se, desejava viver, abraçar a mulher, proteger os filhos ainda pequenos. Mas o vento não o ouvia, empurrava-o para o vazio, quase sem tempo para gritar. O livro acabava em tons de vermelho, sobre a neve que cobria a cidade.
— Eu trabalhei no metro — disse ele de repente.
— E? Não estás à espera que eu diga nada, pois não? Para mim é um trabalho como outro qualquer.
Era a brusquidão dela que o atraía.
— Posso continuar? — perguntou, fingindo estar zangado.
— Sim, desculpa — disse ela envergonhada.
— Um dia atirou-se um homem para a linha, mesmo à frente do metro. — Fez uma pausa antes de continuar. — Eu não consegui parar o metro, não dava para parar.
Margarida agarrou as mãos dele, estavam suadas e frias.
— Rui, tens a certeza que queres falar nisto?
Ele baixou a cabeça e continuou.
— Tiveram de me tirar de dentro da carruagem em braços. Fiquei paralisado, na expressão do homem que saltou, nos olhos dele nos meus. — Fez outra pausa, para recuperar o fôlego. — Foi a última coisa que ele viu, o meu olhar assustado.
Uma onda rebentou e encheu a noite de pequenos salpicos, de sal que se conseguia sentir lambendo as gotas nos lábios. Margarida juntou-se a ele, abraçou-o com força e esperou que ele continuasse.
— Dois anos! Dois anos Margarida! Foi o tempo que aguentei, todos os dias, estação a estação, sempre a olhar as pessoas, sempre a tentar adivinhar, sempre com um frio no estômago.
Outra onda rebentou com força, como se o mar sentisse o medo. Margarida desistiu de todas as palavras em que pensou, do consolo que não sabia como dar, encostou-se apenas a ele e ouviu o seu coração acelerado.
— E depois? — perguntou ela.
— Um dia conheci um senhor, um homem na paragem do autocarro. Ele meteu conversa, já nem me lembro sobre o quê, só sei que acabei a contar-lhe da minha prisão, dos meus dias sem fim. Acho que ele me fez lembrar o meu avô, ele conseguia sempre fazer conversa com as pessoas na rua.
— Conheço o género — disse ela a sorrir. — Mas e depois? Disse-te alguma coisa que te ajudou?
— Contou-me uma história, sobre uma briga que tinha tido com um amigo de infância. Uma coisa estranha, conheciam-se desde sempre, mas um dia começaram a discutir por causa de algo sem importância e acabaram à pancada. Quando os separaram praguejaram, disseram o que não sentiam, amaldiçoaram-se mutuamente.
— Homens! — disse ela com um ar de reprovação.
— Pois, homens — disse ele sem convicção. — Mas o outro, o que tinha sido amigo do senhor que me contou a história, parece que lhe lançou uma praga muito estranha.
— Como assim? — perguntou ela intrigada.
— Disse-lhe que no dia em que iria morrer, que nesse dia ouviria uma determinada música antes de morrer.
— Uma música? — perguntou ela, cada vez mais curiosa.
— Sim, uma música. Ele até me disse qual era, mas sinceramente não decorei.
Margarida ficou em silêncio. Pensou como reagiria a algo assim, como seria viver cada dia à espera de uma música, que anunciaria a sua morte.
— Sabes o que é que fez o senhor a quem foi lançada a praga? — perguntou ele.
— Não consigo imaginar — respondeu ela. — Passou a viver apavorado?
— Não! — disse ele com um ar triunfante. — Sabes o que é que ele fez? Eu não acreditei quando ele me contou.
— Conta-me Rui! — gritou ela impaciente.
— A partir desse dia, logo na manhã seguinte, a primeira coisa que ele passou a fazer foi ouvir a música, a que o devia matar.
— Bolas! — exclamou ela. — Ele enfrentou o medo, imagino até que o tenha feito desaparecer. Já o estou a ver, a colocar a agulha sobre o disco, um ritual que às tantas deixou de fazer sentido, que continuou só por hábito.
Rui olhou-a, escondendo o resto da história durante um minuto.
— Não Margarida, ele contou-me, que não havia um só dia, um único dia, em que não sentisse medo, quando a música começava a tocar.
Margarida sentiu a respiração de Rui, a vontade, o pavor de continuar sozinho. Sorriu antes de falar.
— Deixaste o emprego no metro no dia seguinte, não deixaste?
Rui esperou um segundo, para sentir que era verdade.
— Sim, desisti.
Margarida olhava as luzes outra vez. Inspirava o fumo que enchia o carro, que lhe lembrava as viagens com os pais, ela e a irmã à espera do cheiro de um fósforo riscado, da madeira a arder, do ardor na garganta. Encostou a cabeça no ombro de Rui e fechou os olhos. Deixou-se embalar pelo caminho.
quinta-feira, janeiro 03, 2008
Violeta
A mulher vestida de cinzento lembra-me a minha tia Inês, traz-me o seu sorriso de volta, as suas histórias contadas, repetidas vezes sem conta, até já não ter coragem de pedir. O autocarro embala-me a manhã, mergulhando-me em sonhos, afastando o acordar. Lembro-me da minha história preferida.
Era uma vez uma menina, uma princesa que vivia num lugar distante, um mundo feito de erva verde, de montes redondos que escondiam o Sol. A menina chamava-se Violeta, um nome escolhido pelo vento, trazido em murmúrios, no barulho das folhas, da água a correr. Violeta não era filha de um Rei, não conhecera sequer o colo de uma mãe, uma Rainha de coroa dourada, vestida com roupas de seda. Era apenas uma princesa, uma menina, mas senhora de um mundo, de campos que não tinham fim. Nesse mundo não havia noite, só a manhã e o entardecer, só o momento antes da primeira estrela, que chamava a luz outra vez, girassóis gigantes que dançavam sem parar, quase sem descanso, num reflexo eterno. Um dia Violeta conheceu um rapaz, ainda não era um homem quando o descobriu, com uma pequena barba de pêlos louros, trepando às árvores, saltando nas pedras do rio. O rapaz era delicado, educado, ensinado a encantar, virtudes que não faziam sentido no mundo de Violeta, que se apaixonara sem as perceber, mesmo antes de descobrir o que escondiam. Ela ficou presa nas palavras, nas aventuras, em reinos longínquos, em histórias de amor, mas também num raro saber, de conseguir ver melhor, de contar mais cores nos insectos, no apontar de uma flor, de um pôr-do-sol, que nunca chegava a acontecer.
O autocarro trava bruscamente. Sinto uma dor no estômago, um murro invisível, igual ao que sentia, no momento em que o mundo perfeito da menina ruía, nas palavras da tia Inês, quando eu só suportava ouvir o resto, de mãos muito apertadas nas dela.
Uma cor apareceu pela primeira vez, desconhecida, perigosa. Violeta espreitou escondida, não por medo, que não conhecia, não por desconfiança, que não existia, só pelo estranhar, dos braços enormes, cheios de pêlos, só pelo tom da noite, que nunca caía. Aproximou-se devagar, do monstro que era o rapaz, sentiu o cheiro intenso, um odor vermelho, um desejo, que não a conseguiu afastar. O monstro feriu-a, rasgou-lhe a carne, magoou-a para sempre, para ela não esquecer, um último aviso, antes de se transformar, da pele branca voltar a brilhar. O rapaz tocou a ferida, fechou-a com um sopro, mas a cicatriz nunca mais desapareceu. Violeta enamorou-se outra vez, sem o ter deixado de estar, sem esquecer, por nada haver a lembrar. Acreditou, fechou os olhos e ouviu, viu o seu mundo perfeito a brilhar, sentiu algo novo, a primeira vez, o descobrir, o começar. Deu uma das mãos ao rapaz, a outra pousou-a no chão, onde uma trepadeira nascia, procurando um tronco de árvore. A planta enrolou-se no seu braço, apertando-o com cuidado, subindo devagar, sem tocar na cicatriz, até o tapar quase todo, prendendo-a, com medo de a perder. O dia nasceu, sem nunca ter adormecido.
Um bêbado grita, berra, chama pela mãe, ajoelha-se no chão e reza, antes de começar a chorar. O autocarro arranca, deixa para trás o homem, deitado no chão, de olhos no céu. Eu ganho coragem para continuar, inspiro o fumo dos outros, entorpeço os sentidos, tento fugir de mim, para conseguir.
Um bramido fez Violeta correr, pedir, que pudesse estar a sonhar. O monstro tinha as garras espetadas num alce, um amigo antigo, sem tempo de ver, de olhar o mundo à sua volta, com os olhos fechados à força, com um último respirar, do seu próprio morrer. O monstro devorou a carne voraz, cresceu o peito para cima, queimou a terra à sua volta, um desafio em fúria, feito de medo, de ira, de tudo o que não podia existir ali, abrindo uma ferida, que nunca iria sarar. Violeta ficou parada à frente dele, chamou o rapaz uma última vez, por uma resposta que não podia esperar. Tocou-lhe no pêlo com o braço ferido, hesitando só por um fragmento de tempo, antes de se despedir sem mágoa. O monstro era duas vezes maior, mas ficou junto ao chão, aceitando o castigo, pelo qual sempre esperou. Violeta viu os olhos do rapaz, antes de gritar em silêncio. A besta elevou-se no ar, escondendo a dor, quando ouviu as palavras antigas, que o transformaram em pó. A princesa ajoelhou-se, ordenou ao vento que soprasse forte, que afastasse a cor escura do seu mundo. O vento obedeceu, levou com ele o que antes tinha sido o monstro, o rapaz, as histórias, a dor, a cor, a água fria, o belo, o disforme. Cobriu o céu com o pó negro, e fez a primeira noite. A menina, a princesa, deixou por fim as lágrimas caírem, mil lágrimas brilhantes, que se partiram cada uma em outras mil, e essas em outras, até ao fim do tempo. Entregou-as também ao vento, que as espalhou na noite escura, criando as estrelas.
Desço para a rua, e espero o anoitecer. Dói-me esta história, sempre me doeu esta história, mas imagino a menina a olhar o céu, a sorrir, a fazer desenhos com os dedos no ar, unindo as estrelas na forma de um monstro, na forma de um rapaz.
Era uma vez uma menina, uma princesa que vivia num lugar distante, um mundo feito de erva verde, de montes redondos que escondiam o Sol. A menina chamava-se Violeta, um nome escolhido pelo vento, trazido em murmúrios, no barulho das folhas, da água a correr. Violeta não era filha de um Rei, não conhecera sequer o colo de uma mãe, uma Rainha de coroa dourada, vestida com roupas de seda. Era apenas uma princesa, uma menina, mas senhora de um mundo, de campos que não tinham fim. Nesse mundo não havia noite, só a manhã e o entardecer, só o momento antes da primeira estrela, que chamava a luz outra vez, girassóis gigantes que dançavam sem parar, quase sem descanso, num reflexo eterno. Um dia Violeta conheceu um rapaz, ainda não era um homem quando o descobriu, com uma pequena barba de pêlos louros, trepando às árvores, saltando nas pedras do rio. O rapaz era delicado, educado, ensinado a encantar, virtudes que não faziam sentido no mundo de Violeta, que se apaixonara sem as perceber, mesmo antes de descobrir o que escondiam. Ela ficou presa nas palavras, nas aventuras, em reinos longínquos, em histórias de amor, mas também num raro saber, de conseguir ver melhor, de contar mais cores nos insectos, no apontar de uma flor, de um pôr-do-sol, que nunca chegava a acontecer.
O autocarro trava bruscamente. Sinto uma dor no estômago, um murro invisível, igual ao que sentia, no momento em que o mundo perfeito da menina ruía, nas palavras da tia Inês, quando eu só suportava ouvir o resto, de mãos muito apertadas nas dela.
Uma cor apareceu pela primeira vez, desconhecida, perigosa. Violeta espreitou escondida, não por medo, que não conhecia, não por desconfiança, que não existia, só pelo estranhar, dos braços enormes, cheios de pêlos, só pelo tom da noite, que nunca caía. Aproximou-se devagar, do monstro que era o rapaz, sentiu o cheiro intenso, um odor vermelho, um desejo, que não a conseguiu afastar. O monstro feriu-a, rasgou-lhe a carne, magoou-a para sempre, para ela não esquecer, um último aviso, antes de se transformar, da pele branca voltar a brilhar. O rapaz tocou a ferida, fechou-a com um sopro, mas a cicatriz nunca mais desapareceu. Violeta enamorou-se outra vez, sem o ter deixado de estar, sem esquecer, por nada haver a lembrar. Acreditou, fechou os olhos e ouviu, viu o seu mundo perfeito a brilhar, sentiu algo novo, a primeira vez, o descobrir, o começar. Deu uma das mãos ao rapaz, a outra pousou-a no chão, onde uma trepadeira nascia, procurando um tronco de árvore. A planta enrolou-se no seu braço, apertando-o com cuidado, subindo devagar, sem tocar na cicatriz, até o tapar quase todo, prendendo-a, com medo de a perder. O dia nasceu, sem nunca ter adormecido.
Um bêbado grita, berra, chama pela mãe, ajoelha-se no chão e reza, antes de começar a chorar. O autocarro arranca, deixa para trás o homem, deitado no chão, de olhos no céu. Eu ganho coragem para continuar, inspiro o fumo dos outros, entorpeço os sentidos, tento fugir de mim, para conseguir.
Um bramido fez Violeta correr, pedir, que pudesse estar a sonhar. O monstro tinha as garras espetadas num alce, um amigo antigo, sem tempo de ver, de olhar o mundo à sua volta, com os olhos fechados à força, com um último respirar, do seu próprio morrer. O monstro devorou a carne voraz, cresceu o peito para cima, queimou a terra à sua volta, um desafio em fúria, feito de medo, de ira, de tudo o que não podia existir ali, abrindo uma ferida, que nunca iria sarar. Violeta ficou parada à frente dele, chamou o rapaz uma última vez, por uma resposta que não podia esperar. Tocou-lhe no pêlo com o braço ferido, hesitando só por um fragmento de tempo, antes de se despedir sem mágoa. O monstro era duas vezes maior, mas ficou junto ao chão, aceitando o castigo, pelo qual sempre esperou. Violeta viu os olhos do rapaz, antes de gritar em silêncio. A besta elevou-se no ar, escondendo a dor, quando ouviu as palavras antigas, que o transformaram em pó. A princesa ajoelhou-se, ordenou ao vento que soprasse forte, que afastasse a cor escura do seu mundo. O vento obedeceu, levou com ele o que antes tinha sido o monstro, o rapaz, as histórias, a dor, a cor, a água fria, o belo, o disforme. Cobriu o céu com o pó negro, e fez a primeira noite. A menina, a princesa, deixou por fim as lágrimas caírem, mil lágrimas brilhantes, que se partiram cada uma em outras mil, e essas em outras, até ao fim do tempo. Entregou-as também ao vento, que as espalhou na noite escura, criando as estrelas.
Desço para a rua, e espero o anoitecer. Dói-me esta história, sempre me doeu esta história, mas imagino a menina a olhar o céu, a sorrir, a fazer desenhos com os dedos no ar, unindo as estrelas na forma de um monstro, na forma de um rapaz.
terça-feira, dezembro 04, 2007
O Quarto Lilás
Os olhos de Maria procuravam no escuro, sabia de cor as paredes, a arca dos brinquedos, o cavalinho de madeira escura. Conseguia ouvir os pais na sala ao fim do corredor, o passar das folhas do jornal, a colher na chávena de chá, o bule pousado devagar. Tinham-se habituado aos silêncios da filha, pequenos passos na alcatifa, num correr abafado, e a segredos escondidos, por trás de um sorriso irrequieto. Maria tinha apenas quatro anos, mas explorava a casa como se fosse uma caçadora experiente, esperando, observando, descobrindo os cheiros, caminhando devagar, por entre as ervas secas da savana. No quarto, um barulho trouxe o medo, a barriga fria, duas mãos esticadas, num abraço esperado. Dois olhos brilharam, por cima de dentes aguçados, de dedos deformados, em garras afiadas, de um tocar gentil. Maria não conteve um grito, um desejo que se transformou, que chamou os passos pesados na madeira. O pai acendeu a luz, antes de uma prece rápida, por não conseguir perceber. A mãe caiu em desmaio, ao ver as mãos da filha, vermelhas de sangue vivo, que escorria até aos seus pés. Maria chorou baixinho, quando ouviu um esconder apressado, seguido de uma porta fechada.
— Queres esperar? — perguntou João.
Maria não respondeu, ficou parada no princípio das escadas. A casa por fora estava na mesma, a madeira pintada de branco, o telhado feito de telhas negras. Pelas janelas conseguia ver os cortinados de rendas perfeitas, pequenos desenhos que lhe traziam imagens à cabeça. Lembrava-se da mãe a bordar, de se deitar no seu colo, fugindo da sombra no chão, fechando os olhos para o Sol.
— Não acredito que ele não a tenha vendido — disse quase a chorar. — Não acredito que ele não tenha dito nada, mesmo nestes últimos anos. Achas que era por isso que ele sorria, mesmo antes de fechar os olhos?
— Não sei mana, não sei — disse João, ao mesmo tempo que olhava intrigado para a casa. — Acho que ninguém podia adivinhar, depois de tudo o que se passou.
Maria olhou para ele, à espera da pergunta.
— Maria...
— Nunca perguntaste João, tu nunca perguntaste — disse ela olhando-o nos olhos.
— Sim, eu sei... bolas! Tu tinhas quatro anos, eu nem sei o que te perguntar. — Subiu dois degraus sem reparar. — Eu já nasci com o segredo guardado, para mim não era sequer uma hipótese perguntar.
— Eu lembro-me de tudo — disse ela, ao mesmo tempo que subia também os degraus. — Lembro-me de tudo o que se passou naquela noite.
— A sério? — perguntou ele.
— Todos os dias da minha vida, todos os dias da minha vida.
— O que era? — perguntou, relembrando os medos de criança, de histórias assustadoras, que não lhe souberam explicar. — Quem estava contigo no quarto?
— Um amigo João — disse ela, enquanto subia mais um degrau, aproximando-se da porta da entrada. — Era apenas um amigo.
— Mas era real? — perguntou ele, pedindo desculpa com o olhar.
Maria sorriu.
— Para mim era João, para mim era.
Subiram até um pequeno alpendre, empurraram a porta pintada de verde, de tinta ressequida que lhes sujou as mãos. Sentiram o cheiro do pó, de anos de vazio, de silêncio forçado. João entrou à frente, protegendo a irmã, escondendo o medo.
— Onde é o quarto?
— No fim do corredor — respondeu ela, enquanto passava à frente dele, correndo até a uma porta fechada.
— Maria, queres entrar sozinha? — perguntou ele, tentando adivinhar qual era o desejo da irmã.
Ela sorriu outra vez.
— Não João, podes entrar comigo. Só preciso de me lembrar, de ter a certeza, de que nunca me vou esquecer.
— Mana...
— O que foi? — perguntou ela, disfarçando a impaciência, com a mão no puxador da porta.
— Obrigado por partilhares isto comigo, por me levares nas tuas aventuras.
— Tonto — disse ela a rir, com os olhos cheios de lágrimas. — Anda, não vais acreditar na cor das paredes.
— Queres esperar? — perguntou João.
Maria não respondeu, ficou parada no princípio das escadas. A casa por fora estava na mesma, a madeira pintada de branco, o telhado feito de telhas negras. Pelas janelas conseguia ver os cortinados de rendas perfeitas, pequenos desenhos que lhe traziam imagens à cabeça. Lembrava-se da mãe a bordar, de se deitar no seu colo, fugindo da sombra no chão, fechando os olhos para o Sol.
— Não acredito que ele não a tenha vendido — disse quase a chorar. — Não acredito que ele não tenha dito nada, mesmo nestes últimos anos. Achas que era por isso que ele sorria, mesmo antes de fechar os olhos?
— Não sei mana, não sei — disse João, ao mesmo tempo que olhava intrigado para a casa. — Acho que ninguém podia adivinhar, depois de tudo o que se passou.
Maria olhou para ele, à espera da pergunta.
— Maria...
— Nunca perguntaste João, tu nunca perguntaste — disse ela olhando-o nos olhos.
— Sim, eu sei... bolas! Tu tinhas quatro anos, eu nem sei o que te perguntar. — Subiu dois degraus sem reparar. — Eu já nasci com o segredo guardado, para mim não era sequer uma hipótese perguntar.
— Eu lembro-me de tudo — disse ela, ao mesmo tempo que subia também os degraus. — Lembro-me de tudo o que se passou naquela noite.
— A sério? — perguntou ele.
— Todos os dias da minha vida, todos os dias da minha vida.
— O que era? — perguntou, relembrando os medos de criança, de histórias assustadoras, que não lhe souberam explicar. — Quem estava contigo no quarto?
— Um amigo João — disse ela, enquanto subia mais um degrau, aproximando-se da porta da entrada. — Era apenas um amigo.
— Mas era real? — perguntou ele, pedindo desculpa com o olhar.
Maria sorriu.
— Para mim era João, para mim era.
Subiram até um pequeno alpendre, empurraram a porta pintada de verde, de tinta ressequida que lhes sujou as mãos. Sentiram o cheiro do pó, de anos de vazio, de silêncio forçado. João entrou à frente, protegendo a irmã, escondendo o medo.
— Onde é o quarto?
— No fim do corredor — respondeu ela, enquanto passava à frente dele, correndo até a uma porta fechada.
— Maria, queres entrar sozinha? — perguntou ele, tentando adivinhar qual era o desejo da irmã.
Ela sorriu outra vez.
— Não João, podes entrar comigo. Só preciso de me lembrar, de ter a certeza, de que nunca me vou esquecer.
— Mana...
— O que foi? — perguntou ela, disfarçando a impaciência, com a mão no puxador da porta.
— Obrigado por partilhares isto comigo, por me levares nas tuas aventuras.
— Tonto — disse ela a rir, com os olhos cheios de lágrimas. — Anda, não vais acreditar na cor das paredes.
terça-feira, novembro 27, 2007
Fado
Três mulheres esperavam encostadas à parede. Sentadas num banco de madeira esfregavam os pés, escondiam as meias cheias de buracos. Estavam todas vestidas de negro, como se o sentir da música a isso obrigasse. Rui não gostava de fado, só sentia falta do cheiro das velas, do vinho vermelho no copo, do sabor a cortiça enrolado na língua. Desde que chegara pouco comera, meia morcela assada, duas fatias de pão mal cozido, e azeitonas, muitas azeitonas. Prometeu a si próprio que só tinha de esperar mais uns minutos, a Lurdes ia cantar, e ela chorava sempre no fim.
O frio da rua recebeu-o, roubou-o ao calor da lareira, das braseiras escondidas debaixo das mesas. Desceu a Rua do Alecrim, contando as moedas perdidas nos bolsos, sonhando com o fim da noite, com Licor Beirão na tasca do Silva, antes do demorado adormecer.
Um homem. Estava um homem à beira da estrada, com metade dos sapatos fora do passeio. Um carro parou perto dele, julgando que queria atravessar. O homem sorriu, de forma gentil indicou a passagem, o caminho que nunca estivera tapado. O carro arrancou, apenas para logo travar bruscamente, por causa de um rapaz louro que passou a correr, que nunca chegou a perceber, que ali, num segundo, cabia toda a sua vida.
Rui olhou para o homem, estava vestido com um sobretudo preto, cabelo curto, mãos nuas, sapatos engraxados. Dirigiu-se a ele.
— O rapaz podia ter morrido — disse, sem coragem de atravessar a rua.
O homem olhou espantado.
— Vês-me criança? — perguntou em voz alta.
Rui não respondeu, ficou paralisado com o grito.
— Responde-me! Tu consegues ver-me? — gritou outra vez.
Rui aproximou-se. O medo desapareceu, no momento em que percebeu.
— Tu és o destino — disse com uma voz calma.
O homem sorriu, cresceu numa gargalhada, num riso aos soluços.
— Anda, vem comigo — disse, começando a andar.
Caminharam em silêncio durante mais de uma hora, numa noite sem lua, sem barulho de animais. Os homens do lixo sacudiam os contentores para os camiões, as ruas eram lavadas com mangueiras compridas, água suja que escorria para as sarjetas. Rui guardou as perguntas, esperou em nervos, numa ânsia disfarçada.
Perto do rio o homem parou e tirou-lhe o cigarro da boca.
— Isso vai acabar por te matar.
Rui olhou para o chão. Pisou a beata, esmagou-a de raiva.
— Calma, era só uma expressão — disse o homem a rir.
— Mas não está já escrito? — perguntou com medo.
O homem ficou calado. Rui não aguentou.
— Não percebo. Se tu... se está escrito, porque é que tens de intervir? O rapaz louro... ele devia ter... não era isso que estava... não era isso que devia ter acontecido?
O homem continuou calado.
— E eu? São os cigarros, o vinho? Não tenhas pena de mim, por favor, tudo menos pena. O destino é isso, não é? Tudo está escrito, páginas e páginas, com tudo o que aconteceu, com tudo o que vai acontecer.
O homem puxou-o com força. Agarrou-lhe a cara com as duas mãos.
— Rui, tu tens um dom, vês o que os outros não conseguem. Não estragues tudo, são demasiadas respostas.
Afastou-se, depois de um beijo, um toque de lábios, sem calor nem frio. Rui ficou a vê-lo a ir, resistindo ao chamar, agradecendo baixinho. O vento trouxe palavras, que mal conseguiu ouvir.
— São acertos criança, são só pequenos acertos.
O frio da rua recebeu-o, roubou-o ao calor da lareira, das braseiras escondidas debaixo das mesas. Desceu a Rua do Alecrim, contando as moedas perdidas nos bolsos, sonhando com o fim da noite, com Licor Beirão na tasca do Silva, antes do demorado adormecer.
Um homem. Estava um homem à beira da estrada, com metade dos sapatos fora do passeio. Um carro parou perto dele, julgando que queria atravessar. O homem sorriu, de forma gentil indicou a passagem, o caminho que nunca estivera tapado. O carro arrancou, apenas para logo travar bruscamente, por causa de um rapaz louro que passou a correr, que nunca chegou a perceber, que ali, num segundo, cabia toda a sua vida.
Rui olhou para o homem, estava vestido com um sobretudo preto, cabelo curto, mãos nuas, sapatos engraxados. Dirigiu-se a ele.
— O rapaz podia ter morrido — disse, sem coragem de atravessar a rua.
O homem olhou espantado.
— Vês-me criança? — perguntou em voz alta.
Rui não respondeu, ficou paralisado com o grito.
— Responde-me! Tu consegues ver-me? — gritou outra vez.
Rui aproximou-se. O medo desapareceu, no momento em que percebeu.
— Tu és o destino — disse com uma voz calma.
O homem sorriu, cresceu numa gargalhada, num riso aos soluços.
— Anda, vem comigo — disse, começando a andar.
Caminharam em silêncio durante mais de uma hora, numa noite sem lua, sem barulho de animais. Os homens do lixo sacudiam os contentores para os camiões, as ruas eram lavadas com mangueiras compridas, água suja que escorria para as sarjetas. Rui guardou as perguntas, esperou em nervos, numa ânsia disfarçada.
Perto do rio o homem parou e tirou-lhe o cigarro da boca.
— Isso vai acabar por te matar.
Rui olhou para o chão. Pisou a beata, esmagou-a de raiva.
— Calma, era só uma expressão — disse o homem a rir.
— Mas não está já escrito? — perguntou com medo.
O homem ficou calado. Rui não aguentou.
— Não percebo. Se tu... se está escrito, porque é que tens de intervir? O rapaz louro... ele devia ter... não era isso que estava... não era isso que devia ter acontecido?
O homem continuou calado.
— E eu? São os cigarros, o vinho? Não tenhas pena de mim, por favor, tudo menos pena. O destino é isso, não é? Tudo está escrito, páginas e páginas, com tudo o que aconteceu, com tudo o que vai acontecer.
O homem puxou-o com força. Agarrou-lhe a cara com as duas mãos.
— Rui, tu tens um dom, vês o que os outros não conseguem. Não estragues tudo, são demasiadas respostas.
Afastou-se, depois de um beijo, um toque de lábios, sem calor nem frio. Rui ficou a vê-lo a ir, resistindo ao chamar, agradecendo baixinho. O vento trouxe palavras, que mal conseguiu ouvir.
— São acertos criança, são só pequenos acertos.
segunda-feira, novembro 19, 2007
Tudo o que somos
Sentei-me à espera do metro. Passei as mãos pelo cabelo, apenas para respirar fundo, para lembrar a mim mesmo que estava triste. Ao meu lado estava uma senhora, uma mulher de cabelos brancos com as mãos aquecidas debaixo de um xaile. Passou um homem vestido com um casaco creme e atirou uma moeda para a frente dela. Olhei para o chão e vi um pano cinzento cheio de moedas, demasiadas moedas. Dei por mim a falar, antes de ganhar coragem para o fazer.
- Desculpe, isso não é seu, pois não?
Ela esboçou um sorriso muito leve. Respondeu de olhos nos meus.
- Já cá estava quando cheguei, mas não tinha moedas, deve ser do cabelo comprido.
Não percebi o que ela dizia.
- Como assim?
Ela repetiu com paciência.
- Disse que deve ser do cabelo comprido, as mulheres mais velhas não o usam comprido, muito menos sem o pintarem.
Achei que o silêncio falava por mim, dizia que eu percebia. Passaram duas raparigas por nós e cada uma delas deixou uma moeda. A senhora agradeceu, desejando sorte e saúde. Eu voltei às perguntas.
- Estão aí muitas moedas. Há quanto tempo está aqui?
Ela olhou para um relógio pequeno que tirou de um bolso.
- Há umas duas horas. É de facto muito dinheiro.
Tentei contar, ela interrompeu-me.
- E tirei de lá as notas, o metro a passar fazia-as voar.
Rebentei de ansiedade e falei em voz alta.
- Eu sou invisível, sabia?
Ela não se assustou e falou devagar.
- São como os bares dos filmes, não são?
Não percebi a pergunta, ela explicou antes de eu perguntar.
- Os transportes públicos, acho que são como os bares dos filmes, aqueles onde há sempre um conselho atrás do balcão.
Sorri para ela antes de continuar.
- Sinto-me invisível, sinto-me vazio, sem nada a que me agarrar. Às vezes acho que não existo para os outros, que acabo sempre sozinho.
Ela olhou para mim sem expressão. Tive medo.
- Não me vai dizer que devia dar graças por tudo o que tenho, pois não?
Ela não respondeu. Eu continuei.
- Não me vai dizer que as pessoas é que criam os problemas, vai?
Senti uma mão quente na minha.
- Não, não vou. Queres ouvir uma história?
Disse que sim. Ela inspirou antes de começar, eu percebi que não a podia interromper.
Contou-me que tinha nascido numa aldeia muito longe, a terra dos dias compridos, como lhe costumava chamar. Todos trabalhavam a terra, endureciam as mãos na enxada, vergavam as costas até não se conseguirem endireitar. Era gente pobre, gente de pouca conversa, que as palavras secavam a boca, mesmo a quem tinha pouco que dizer. Ela tinha nascido de destino já feito, entre casas de pedra escura, de barulhos de cascos no chão, de água sempre fria, de jantares em silêncio, de velas contadas para a noite, do adormecer no escuro, de orações repetidas, sem ter nada que pedir, enquanto o terço escorregava entre os seus dedos de miúda. Um dia, devia ter uns doze anos, chegou à aldeia um rapaz. Diziam que era filho de um padre, que o mandara para ali antes de se matar, por não aguentar a vergonha. O rapaz ficou a viver em casa de um prima do padre, que se passou a vestir sempre de negro, mas que não conseguia esconder o ouro, os fios brilhantes entrelaçados ao pescoço, uma riqueza que viria a amaldiçoar. Uma noite, pouco tempo depois do rapaz ter vindo para a aldeia, o pai dela entrou em casa a falar muito alto, tão alto que ela parou de rezar. Encostou-se à porta do quarto e ouviu-o a contar à mãe o que andavam a dizer sobre o rapaz, que ele não era normal, que tinha um pacto com o diabo, que os animais gemiam de medo quando passava, que as árvores perto do riacho estavam a secar, desde que ele começara a passar os dias deitado perto da água. Mas o pai tinha mais para contar, lembrava-se que tinha baixado a voz para ela não o ouvir, mas que não tinha obedecido ao medo e ouviu, o pai falou muito baixo, mas ela ouviu. Todos comentavam que o rapaz não tinha sombra, que não deixava pegadas atrás dele, mesmo quando caminhava na lama, que a sua voz não voltava com o eco, o seu sopro não fazia tremer a chama das velas, que o caminho dele não ficava marcado no mundo, como os espíritos que o terço afastava. Nunca tinha ouvido o pai tão preocupado, o que só compreendera mais tarde, pois aquele mundo fechado, aquele mundo que era igual desde sempre, tinha sido abalado, tinha sido perturbado no seu equilíbrio. No dia seguinte saiu de casa sem avisar, desafiando o que sabia ser a vontade do pai, correu em direcção ao riacho sem saber porque o fazia, sem conseguir deixar de o fazer. Ao chegar viu que as árvores estavam despidas de folhas, mas que pequenos rebentos verdes nasciam nos ramos. O rapaz estava sentado numa pedra. Ela chegou perto dele e tocou-lhe, para saber se era verdade, para saber se ele existia. Ele esperou que ela sentisse o calor, antes de lhe agarrar o braço com força, antes de a magoar sem maldade, de a ferir com cuidado. No dia seguinte ela fugiu, com a ajuda do choro escondido da mãe. Só voltou à aldeia dez anos depois, a tempo de ver o pai sorrir pela primeira vez na vida, antes do seu último suspiro. O rapaz tinha desaparecido pouco tempo depois dela ter fugido, ninguém sabia o que lhe tinha acontecido.
O metro apitou antes de fechar as portas e eu voltei a mim. A senhora agarrava o pulso direito com a mão esquerda. Eu precisei de ter a certeza, para acreditar.
- Posso ver?
Ela não respondeu. Puxou a manga da camisa para trás e mostrou-me o braço. Não tinha nenhuma marca, só o passar dos anos, escritos na pele branca e enrugada. Fiquei preso numa vertigem, tentando perceber o sentido.
- Mas o seu braço não está marcado.
Ela sorriu.
- Pois não, mas não há um dia que passe que não o sinta.
- Desculpe, isso não é seu, pois não?
Ela esboçou um sorriso muito leve. Respondeu de olhos nos meus.
- Já cá estava quando cheguei, mas não tinha moedas, deve ser do cabelo comprido.
Não percebi o que ela dizia.
- Como assim?
Ela repetiu com paciência.
- Disse que deve ser do cabelo comprido, as mulheres mais velhas não o usam comprido, muito menos sem o pintarem.
Achei que o silêncio falava por mim, dizia que eu percebia. Passaram duas raparigas por nós e cada uma delas deixou uma moeda. A senhora agradeceu, desejando sorte e saúde. Eu voltei às perguntas.
- Estão aí muitas moedas. Há quanto tempo está aqui?
Ela olhou para um relógio pequeno que tirou de um bolso.
- Há umas duas horas. É de facto muito dinheiro.
Tentei contar, ela interrompeu-me.
- E tirei de lá as notas, o metro a passar fazia-as voar.
Rebentei de ansiedade e falei em voz alta.
- Eu sou invisível, sabia?
Ela não se assustou e falou devagar.
- São como os bares dos filmes, não são?
Não percebi a pergunta, ela explicou antes de eu perguntar.
- Os transportes públicos, acho que são como os bares dos filmes, aqueles onde há sempre um conselho atrás do balcão.
Sorri para ela antes de continuar.
- Sinto-me invisível, sinto-me vazio, sem nada a que me agarrar. Às vezes acho que não existo para os outros, que acabo sempre sozinho.
Ela olhou para mim sem expressão. Tive medo.
- Não me vai dizer que devia dar graças por tudo o que tenho, pois não?
Ela não respondeu. Eu continuei.
- Não me vai dizer que as pessoas é que criam os problemas, vai?
Senti uma mão quente na minha.
- Não, não vou. Queres ouvir uma história?
Disse que sim. Ela inspirou antes de começar, eu percebi que não a podia interromper.
Contou-me que tinha nascido numa aldeia muito longe, a terra dos dias compridos, como lhe costumava chamar. Todos trabalhavam a terra, endureciam as mãos na enxada, vergavam as costas até não se conseguirem endireitar. Era gente pobre, gente de pouca conversa, que as palavras secavam a boca, mesmo a quem tinha pouco que dizer. Ela tinha nascido de destino já feito, entre casas de pedra escura, de barulhos de cascos no chão, de água sempre fria, de jantares em silêncio, de velas contadas para a noite, do adormecer no escuro, de orações repetidas, sem ter nada que pedir, enquanto o terço escorregava entre os seus dedos de miúda. Um dia, devia ter uns doze anos, chegou à aldeia um rapaz. Diziam que era filho de um padre, que o mandara para ali antes de se matar, por não aguentar a vergonha. O rapaz ficou a viver em casa de um prima do padre, que se passou a vestir sempre de negro, mas que não conseguia esconder o ouro, os fios brilhantes entrelaçados ao pescoço, uma riqueza que viria a amaldiçoar. Uma noite, pouco tempo depois do rapaz ter vindo para a aldeia, o pai dela entrou em casa a falar muito alto, tão alto que ela parou de rezar. Encostou-se à porta do quarto e ouviu-o a contar à mãe o que andavam a dizer sobre o rapaz, que ele não era normal, que tinha um pacto com o diabo, que os animais gemiam de medo quando passava, que as árvores perto do riacho estavam a secar, desde que ele começara a passar os dias deitado perto da água. Mas o pai tinha mais para contar, lembrava-se que tinha baixado a voz para ela não o ouvir, mas que não tinha obedecido ao medo e ouviu, o pai falou muito baixo, mas ela ouviu. Todos comentavam que o rapaz não tinha sombra, que não deixava pegadas atrás dele, mesmo quando caminhava na lama, que a sua voz não voltava com o eco, o seu sopro não fazia tremer a chama das velas, que o caminho dele não ficava marcado no mundo, como os espíritos que o terço afastava. Nunca tinha ouvido o pai tão preocupado, o que só compreendera mais tarde, pois aquele mundo fechado, aquele mundo que era igual desde sempre, tinha sido abalado, tinha sido perturbado no seu equilíbrio. No dia seguinte saiu de casa sem avisar, desafiando o que sabia ser a vontade do pai, correu em direcção ao riacho sem saber porque o fazia, sem conseguir deixar de o fazer. Ao chegar viu que as árvores estavam despidas de folhas, mas que pequenos rebentos verdes nasciam nos ramos. O rapaz estava sentado numa pedra. Ela chegou perto dele e tocou-lhe, para saber se era verdade, para saber se ele existia. Ele esperou que ela sentisse o calor, antes de lhe agarrar o braço com força, antes de a magoar sem maldade, de a ferir com cuidado. No dia seguinte ela fugiu, com a ajuda do choro escondido da mãe. Só voltou à aldeia dez anos depois, a tempo de ver o pai sorrir pela primeira vez na vida, antes do seu último suspiro. O rapaz tinha desaparecido pouco tempo depois dela ter fugido, ninguém sabia o que lhe tinha acontecido.
O metro apitou antes de fechar as portas e eu voltei a mim. A senhora agarrava o pulso direito com a mão esquerda. Eu precisei de ter a certeza, para acreditar.
- Posso ver?
Ela não respondeu. Puxou a manga da camisa para trás e mostrou-me o braço. Não tinha nenhuma marca, só o passar dos anos, escritos na pele branca e enrugada. Fiquei preso numa vertigem, tentando perceber o sentido.
- Mas o seu braço não está marcado.
Ela sorriu.
- Pois não, mas não há um dia que passe que não o sinta.
segunda-feira, novembro 12, 2007
Julieta
Julieta era uma rapariga muito magra, de braços finos e dedos compridos. Tinha olhos negros, muito negros, que quase desapareciam na cara. Todos achavam que sofria de alguma doença, de um mal que a iria consumir, dia após dia, ano após ano, até morrer num suspiro, num sopro que não se conseguiria ouvir. Ninguém sabia a verdade, Julieta, como outras raparigas de olhar triste, era uma fada. No Inverno costumava passear sozinha, pouco depois do sol nascer, corria por entre os arbustos de braços abertos, sem tocar as gotas presas nas folhas. No verão respirava o ar quente da tarde, tossia a terra seca, o pó que se levantava com o bater dos pés. De dia andava descalça, de pedra em pedra, sorrindo para o seu reflexo no rio. À noite calçava sapatos brilhantes, por cima de pequenas meias, com delicadas rendas nos tornozelos. Julieta esperava um homem, mesmo sendo ainda uma criança, porque as fadas nunca são mulheres. Um sonho que trouxera o castigo, de viver longe do bosque, sem nunca mais poder voltar. As fadas não crescem, mesmo as amaldiçoadas, as que sangram no corte de uma folha. São crianças para sempre, presas em corpos delicados, que mostram os primeiros sinais de amor, que querem explodir de sentir, proibidas de o ser. Julieta sabia que um dia iria morrer, fecharia os olhos distante, mas acreditava, sem se arrepender, no sonho de um homem, com as mãos nas dela. Por isso cantava, repetia em voz baixa, no medo de não conseguir.
vem meu amor
sente a minha mão
ajoelha-te num pedido
em palavras sem fim
vem meu amor
que a morte corre veloz
para me roubar a vida
que eu prometi guardar
vem meu amor
encosta o teu peito ao meu
sente o calor do sol
antes do frio da noite
vem meu amor
sente a minha mão
ajoelha-te num pedido
em palavras sem fim
vem meu amor
que a morte corre veloz
para me roubar a vida
que eu prometi guardar
vem meu amor
encosta o teu peito ao meu
sente o calor do sol
antes do frio da noite
sábado, novembro 03, 2007
A Rapariga Sem Nome
— Sua puta! — gritou o homem do casaco preto, ao mesmo tempo que acertava na cara da rapariga do cachecol verde e lilás. — Não pediste àqueles dois armados em hippies. Filhos da puta de meninos da mamã.
A rapariga dirigiu-se ao casal vestido com roupas largas e coloridas. Eles deram-lhe mais sorrisos do que dinheiro. Acho que tiveram pena. O homem continuou a praguejar.
— Merda, assim não consigo. — Largou a guitarra e levantou-se enquanto gritava. — Vou ver se como qualquer coisa. Vê lá se tomas conta das coisas. Puta distraída, andas sempre com os cornos noutro mundo.
Não resisti e aproximei-me.
— Porque é que deixas ele tratar-te assim? — perguntei eu, depois de lhe ter dado duas moedas, de lhe ter tocado nas mãos.
— Ele não é sempre assim, falta-lhe... ele ainda... ele ainda não comeu.
A resposta era envergonhada, mas ela nem por um segundo baixou a cabeça. Não estava a mentir, sabia o que eu sabia, o que todos sabiam.
— Não vejo o que vês — disse eu.
— Não tenhas pena de mim — disse ela de forma calma. — Foi ele o primeiro, o único que me ouviu, que escreveu para mim, as canções... as músicas que eu esperava desde sempre.
Lembro-me dos olhos cinzentos, daqueles que se misturam com todas as outras cores. A cara dela mostrava o pouco que tinha, magra, seca, queimada do sol. Mas não apagava a beleza, era impossível esconder, o que ela parecia determinada em esquecer. Os dedos da mão esquerda estavam quase castanhos, marcados por demasiados cigarros.
— Não os consegues fumar, pois não? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.
Ela riu-se.
— Foda-se! Não consigo mesmo, alguns só lhes dou uma passa para os acender, essa merda faz mal aos pulmões.
— Tu também não... — Arrependi-me. — Desculpa, não tenho nada a ver com isso.
— Deixa, não há problema. Sim, não fumo, não bebo e não me drogo. — Inspirou o ar da noite antes de continuar, a noite que eu não tinha visto chegar. — Por outro lado vivo na rua, com um músico drogado, bêbado e que ainda por cima me bate, por isso não me dês já os parabéns.
Rebentámos numa gargalhada a dois, depois de um segundo de riso contido.
— Como é que ele se chama? — perguntei, estranhando a minha curiosidade.
— Fernando — respondeu ela pensativa, como quem tem algo mais a dizer. — Fernando, Fernando, senhor Fernando, que me tem presa num feitiço.
— E como é que ele te enfeitiçou?
Ela sorriu, e eu senti o coração apertado, por saber que nunca mais a ia ver.
— É engraçado — disse ela meio a rir.
— Então? — perguntei.
— Devia ter sido ao contrário. Ele ouviu-me um dia a cantar, sentada ali em cima no miradouro. Sabes onde é?
Eu acenei que sim, mentindo só para ela não parar a história.
— Esteve uma hora a ouvir-me escondido, pelo menos foi o que ele disse. Uns dias depois encontrou-me no mesmo sítio. Trazia com ele um monte de folhas todas amarrotadas, escritas a lápis com uma letra muito bonita. Contou-me que não dormia há dois dias, que só pensava em mim, que tinha escrito e composto sem parar, que eu o inspirava. Pediu-me que fosse dele, muito antes de me beijar.
Fiquei a olhar para ela, contendo as lágrimas, invejando a sorte deles.
— Deve ter sido especial — disse, sentindo o vento que passava por ela.
A rapariga sorriu de olhos cintilantes, antes de responder.
— Ainda é... pelo menos quando me consigo lembrar. — As lágrimas correram pelo rosto dela abaixo, riscando o pó e a rua, colados à sua pele. — Obrigada! Obrigada por teres perguntado.
Senti vontade de a levar dali, de a proteger, de lhe perguntar se tinha esperança. Não me atrevi. Ela percebeu.
— Queres ouvir-me cantar?
— E ele? — perguntei com medo que ela desistisse.
— Não te preocupes, ele vai demorar. — Pegou na guitarra e puxou-me pela mão. — Vou mostrar-te o miradouro, aquele que tu fingiste que conhecias.
A rapariga dirigiu-se ao casal vestido com roupas largas e coloridas. Eles deram-lhe mais sorrisos do que dinheiro. Acho que tiveram pena. O homem continuou a praguejar.
— Merda, assim não consigo. — Largou a guitarra e levantou-se enquanto gritava. — Vou ver se como qualquer coisa. Vê lá se tomas conta das coisas. Puta distraída, andas sempre com os cornos noutro mundo.
Não resisti e aproximei-me.
— Porque é que deixas ele tratar-te assim? — perguntei eu, depois de lhe ter dado duas moedas, de lhe ter tocado nas mãos.
— Ele não é sempre assim, falta-lhe... ele ainda... ele ainda não comeu.
A resposta era envergonhada, mas ela nem por um segundo baixou a cabeça. Não estava a mentir, sabia o que eu sabia, o que todos sabiam.
— Não vejo o que vês — disse eu.
— Não tenhas pena de mim — disse ela de forma calma. — Foi ele o primeiro, o único que me ouviu, que escreveu para mim, as canções... as músicas que eu esperava desde sempre.
Lembro-me dos olhos cinzentos, daqueles que se misturam com todas as outras cores. A cara dela mostrava o pouco que tinha, magra, seca, queimada do sol. Mas não apagava a beleza, era impossível esconder, o que ela parecia determinada em esquecer. Os dedos da mão esquerda estavam quase castanhos, marcados por demasiados cigarros.
— Não os consegues fumar, pois não? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.
Ela riu-se.
— Foda-se! Não consigo mesmo, alguns só lhes dou uma passa para os acender, essa merda faz mal aos pulmões.
— Tu também não... — Arrependi-me. — Desculpa, não tenho nada a ver com isso.
— Deixa, não há problema. Sim, não fumo, não bebo e não me drogo. — Inspirou o ar da noite antes de continuar, a noite que eu não tinha visto chegar. — Por outro lado vivo na rua, com um músico drogado, bêbado e que ainda por cima me bate, por isso não me dês já os parabéns.
Rebentámos numa gargalhada a dois, depois de um segundo de riso contido.
— Como é que ele se chama? — perguntei, estranhando a minha curiosidade.
— Fernando — respondeu ela pensativa, como quem tem algo mais a dizer. — Fernando, Fernando, senhor Fernando, que me tem presa num feitiço.
— E como é que ele te enfeitiçou?
Ela sorriu, e eu senti o coração apertado, por saber que nunca mais a ia ver.
— É engraçado — disse ela meio a rir.
— Então? — perguntei.
— Devia ter sido ao contrário. Ele ouviu-me um dia a cantar, sentada ali em cima no miradouro. Sabes onde é?
Eu acenei que sim, mentindo só para ela não parar a história.
— Esteve uma hora a ouvir-me escondido, pelo menos foi o que ele disse. Uns dias depois encontrou-me no mesmo sítio. Trazia com ele um monte de folhas todas amarrotadas, escritas a lápis com uma letra muito bonita. Contou-me que não dormia há dois dias, que só pensava em mim, que tinha escrito e composto sem parar, que eu o inspirava. Pediu-me que fosse dele, muito antes de me beijar.
Fiquei a olhar para ela, contendo as lágrimas, invejando a sorte deles.
— Deve ter sido especial — disse, sentindo o vento que passava por ela.
A rapariga sorriu de olhos cintilantes, antes de responder.
— Ainda é... pelo menos quando me consigo lembrar. — As lágrimas correram pelo rosto dela abaixo, riscando o pó e a rua, colados à sua pele. — Obrigada! Obrigada por teres perguntado.
Senti vontade de a levar dali, de a proteger, de lhe perguntar se tinha esperança. Não me atrevi. Ela percebeu.
— Queres ouvir-me cantar?
— E ele? — perguntei com medo que ela desistisse.
— Não te preocupes, ele vai demorar. — Pegou na guitarra e puxou-me pela mão. — Vou mostrar-te o miradouro, aquele que tu fingiste que conhecias.
segunda-feira, outubro 29, 2007
Tokyo Moon
Num segundo andei para trás no tempo. O medo de sair à rua. A noite só se tornou perigosa por causa de tanto a repetir, mas o tempo disfarçou a verdade, de que nunca iria esquecer. Uma lâmina dançou à minha frente, incomodando-me menos que o cheiro de dentes podres, de riso inventado. Abri a camisa, arranquei botões que caíram ao chão, um de cada vez. Enchi o peito, mostrei o coração em provocação, beijei o ar entre nós. Enlouqueci, por um breve momento enlouqueci. No dia seguinte estava dentro de um avião. Levei mais de um dia a chegar, sem a bênção do sono, contando estrelas através da janela. Desembarquei quase do outro lado do mundo, onde o sol devia nascer, mas só me lembro da chuva. Demorei uma hora para sair do aeroporto, ébrio de sensações novas, de aromas irreconhecíveis, da falta das palavras, substituídas por brilhos sempre presentes. Por várias vezes ajoelhei-me em tonturas, vertigens que me obrigaram a tocar o chão, a sentir o calor das pedras alisadas. A porta giratória apareceu à minha frente, oferecendo uma oportunidade de fuga. Primeiro hesitei, temendo ficar preso, depois saí para a rua, respirei fundo e encontrei a noite. Nada me podia ter preparado. O barulho era ensurdecedor, as luzes lutavam para me cegar, milhões de luzes, de todas as cores. Olhei para o céu, um pequeno pedaço de céu que conseguia ver entre os arranha-céus. Então vi-a, despida das nuvens, escondida atrás de um guindaste. Uma lua perfeita, que me tinha seguido. Corri, atirei-me para a frente de carros que se desviavam sem um protesto, larguei as malas e comecei a rir como um miúdo pequeno. Gritei e imitei barulhos de animais. Era invisível para os estranhos à minha volta. Levantei os braços para a chuva, não havia sentido, só repetia o que vira num filme. O medo estava lá, nunca tinha deixado de estar. Mas a lua era a mesma, o que me trazia conforto. Demoraram dois dias a encontrar-me, no meio do lixo, de comida que não experimentei. A água era demasiado quente, o cheiro a incenso fez-me vomitar. Não compreendi os rituais, como se houvesse algo que não podia levar de volta, como se me obrigassem a ver, a ordem que não podia ser desfeita. Eu não lhes podia contar, que nos libertamos sem saber como. Viajei em silêncio, sem estar sozinho.
quarta-feira, outubro 17, 2007
A Casa Abandonada
Estás sentada num sofá feito de um verde esquecido, tapado por uma manta de cores esbatidas, que os meus olhos ainda vêem garridas. Deixo o tempo passar antes de falar.
— Tenho tão pouco para te dar.
Olhas para mim a chorar. As palavras chegam antes de um beijo.
— E ainda assim é tanto.
No Jardim
— Anda Rui! Despacha-te! Deve estar quase alguém a passar.
Eu olhava para o muro e hesitava, estava coberto de trepadeiras, armadilhas que me podiam fazer escorregar. Foste sempre tu que indicaste o caminho, que desafiaste o medo. Pisei o muro apenas durante meio segundo, num equilíbrio que não podia manter, sem perceber a escolha, antes de decidir saltar. Tu recebeste-me a sorrir.
— Achei que ias desistir — disseste, escondendo o riso. — Pensei que caías para o outro lado.
— Achas que ninguém vai aparecer? — perguntei.
— Não sejas tonto, a casa está abandonada há anos. Só tinha medo que nos vissem a entrar.
— Desculpa — disse envergonhado. — Precisei de ganhar coragem.
Já não te ouvi a dizer que não fazia mal, enquanto corrias por entre as árvores.
— Espera por mim! — gritei.
Estava muito calor e a roupa colava-se ao corpo, num prazer de sentir, de cheirar o mundo à nossa volta. Caminhei atrás de ti de olhos fechados, com as mãos à minha frente, para afastar os ramos da cara. O Sol passava entre as folhas e as sombras tremiam por cima de mim. Imaginei que estava num comboio, que viajava de cabelo ao vento, que esticava os braços num voo fingido. Quase que conseguia sentir o cheiro a queimado, era um comboio antigo, que se alimentava de fogo, e respirava um fumo espesso. Mais uma vez chamaste-me, trouxeste-me até ao teu mundo, que se confundia com o meu.
— Anda ver, descobri um sítio incrível.
Ainda tentei perguntar, o que os teus gritos responderam, enquanto rebolavas por um monte abaixo. Deitei-me e rebolei também sobre a erva alta, perdendo a conta às voltas, rindo sem pensar em mais nada, até a barriga doer, até ficar enjoado, tonto de tanto repetir. Sentámo-nos sem forças, o Sol brilhava atrás de um telhado, brincava às escondidas comigo, mostrando-se sempre só um pouco, mesmo antes de desaparecer. Senti o teu cheiro, que não sabia existir, senti a tua mão na minha, e os teus olhos nos meus, a minha boca na tua, os lábios juntos, as cócegas no pescoço, a roupa amarrotada, um sino de uma igreja ao longe, um último raio de Sol, no meio dos teus cabelos.
— Diz-me! — disse, sem me afastar. — Como é que vai ser quando formos crescidos?
Os teus olhos brilharam.
— Rui, nós nunca vamos crescer.
— Tenho tão pouco para te dar.
Olhas para mim a chorar. As palavras chegam antes de um beijo.
— E ainda assim é tanto.
No Jardim
— Anda Rui! Despacha-te! Deve estar quase alguém a passar.
Eu olhava para o muro e hesitava, estava coberto de trepadeiras, armadilhas que me podiam fazer escorregar. Foste sempre tu que indicaste o caminho, que desafiaste o medo. Pisei o muro apenas durante meio segundo, num equilíbrio que não podia manter, sem perceber a escolha, antes de decidir saltar. Tu recebeste-me a sorrir.
— Achei que ias desistir — disseste, escondendo o riso. — Pensei que caías para o outro lado.
— Achas que ninguém vai aparecer? — perguntei.
— Não sejas tonto, a casa está abandonada há anos. Só tinha medo que nos vissem a entrar.
— Desculpa — disse envergonhado. — Precisei de ganhar coragem.
Já não te ouvi a dizer que não fazia mal, enquanto corrias por entre as árvores.
— Espera por mim! — gritei.
Estava muito calor e a roupa colava-se ao corpo, num prazer de sentir, de cheirar o mundo à nossa volta. Caminhei atrás de ti de olhos fechados, com as mãos à minha frente, para afastar os ramos da cara. O Sol passava entre as folhas e as sombras tremiam por cima de mim. Imaginei que estava num comboio, que viajava de cabelo ao vento, que esticava os braços num voo fingido. Quase que conseguia sentir o cheiro a queimado, era um comboio antigo, que se alimentava de fogo, e respirava um fumo espesso. Mais uma vez chamaste-me, trouxeste-me até ao teu mundo, que se confundia com o meu.
— Anda ver, descobri um sítio incrível.
Ainda tentei perguntar, o que os teus gritos responderam, enquanto rebolavas por um monte abaixo. Deitei-me e rebolei também sobre a erva alta, perdendo a conta às voltas, rindo sem pensar em mais nada, até a barriga doer, até ficar enjoado, tonto de tanto repetir. Sentámo-nos sem forças, o Sol brilhava atrás de um telhado, brincava às escondidas comigo, mostrando-se sempre só um pouco, mesmo antes de desaparecer. Senti o teu cheiro, que não sabia existir, senti a tua mão na minha, e os teus olhos nos meus, a minha boca na tua, os lábios juntos, as cócegas no pescoço, a roupa amarrotada, um sino de uma igreja ao longe, um último raio de Sol, no meio dos teus cabelos.
— Diz-me! — disse, sem me afastar. — Como é que vai ser quando formos crescidos?
Os teus olhos brilharam.
— Rui, nós nunca vamos crescer.
segunda-feira, setembro 10, 2007
Mãe
Toda a vida vi a minha mãe a chorar quando lia. Não conseguia tirar este pensamento da cabeça, a livraria estava quase a fechar e eu só pensava nela agarrada a romances antigos, daqueles que pareciam ter tido sempre as folhas amarelas, quase castanhas. Não sei onde é que ela os ia buscar, alguns tinham as capas rasgadas, outros não tinham sequer as primeiras páginas, o que não a parecia incomodar, quase podendo jurar que a maior parte das vezes começava a meio, em histórias já conhecidas. À minha frente vi um desenho que me atraiu a atenção, passei os dedos sobre um relevo que não existia, como se pudesse sentir, para poder escolher. Pequei no livro e dirigi-me ao balcão. Estavam duas pessoas à minha frente, um rapaz que insistia numa queixa qualquer, uma rapariga longe, de olhos muito abertos, que piscavam um de cada vez. Voltei às tardes de criança. Esqueci-me do tempo.
— Boa tarde — disse a rapariga atrás do balcão. — É só o livro?
— Sim — respondi, despertado do sonho.
O barulho da máquina registadora fez-me levantar os olhos, que me levaram a outros em lágrimas. A rapariga tentava secar as gotas que manchavam o vermelho da capa.
— Desculpe, acho que é melhor levar outro — disse ela. — Não faço ideia se vai ficar marcado.
Não resisti à pergunta.
— Posso perguntar porquê?
Ela sorriu antes de responder.
— Não são lágrimas tristes, este livro traz-me boas recordações, sempre que o leio farto-me de chorar.
Lembrei-me da minha mãe, naquele preciso momento lembrei-me de anos de dor.
— Sabe, esse livro é para a minha mãe — disse, de olhos presos aos da rapariga. — Ela chorava sempre que lia.
— Disse que ela chorava, já não o faz? — perguntou ela.
— Acabo sempre a falar no passado — disse eu depois de pensar um segundo. — Acho que o faço de forma automática, aconteceram muitas coisas no passado.
— Eram os melhores momentos, não eram? — perguntou ela num tom impaciente, de quem conseguia adivinhar.
Fui apanhado de surpresa. Nas palavras dela percebi. Levei um minuto a responder. Ela esperou, sem precisar de repetir a pergunta.
— Bolas! Nunca tinha pensado nisso — disse eu com o peito a rebentar. — Sim, eram os melhores momentos, quando a apanhava a chorar, no medo de perguntar, para apenas descobrir, que as lágrimas eram pequenos sorrisos, no sentir de histórias de paixão.
Esperei outra vez, antes de continuar.
— Sim, foram os únicos momentos, em que tenho a certeza que ela estava feliz.
No dia seguinte ofereci outro livro à minha mãe, com uma dedicatória que a fez chorar. O livro de capa vermelha ficou para mim, as manchas das lágrimas nunca saíram, e ainda me fazem sorrir.
— Boa tarde — disse a rapariga atrás do balcão. — É só o livro?
— Sim — respondi, despertado do sonho.
O barulho da máquina registadora fez-me levantar os olhos, que me levaram a outros em lágrimas. A rapariga tentava secar as gotas que manchavam o vermelho da capa.
— Desculpe, acho que é melhor levar outro — disse ela. — Não faço ideia se vai ficar marcado.
Não resisti à pergunta.
— Posso perguntar porquê?
Ela sorriu antes de responder.
— Não são lágrimas tristes, este livro traz-me boas recordações, sempre que o leio farto-me de chorar.
Lembrei-me da minha mãe, naquele preciso momento lembrei-me de anos de dor.
— Sabe, esse livro é para a minha mãe — disse, de olhos presos aos da rapariga. — Ela chorava sempre que lia.
— Disse que ela chorava, já não o faz? — perguntou ela.
— Acabo sempre a falar no passado — disse eu depois de pensar um segundo. — Acho que o faço de forma automática, aconteceram muitas coisas no passado.
— Eram os melhores momentos, não eram? — perguntou ela num tom impaciente, de quem conseguia adivinhar.
Fui apanhado de surpresa. Nas palavras dela percebi. Levei um minuto a responder. Ela esperou, sem precisar de repetir a pergunta.
— Bolas! Nunca tinha pensado nisso — disse eu com o peito a rebentar. — Sim, eram os melhores momentos, quando a apanhava a chorar, no medo de perguntar, para apenas descobrir, que as lágrimas eram pequenos sorrisos, no sentir de histórias de paixão.
Esperei outra vez, antes de continuar.
— Sim, foram os únicos momentos, em que tenho a certeza que ela estava feliz.
No dia seguinte ofereci outro livro à minha mãe, com uma dedicatória que a fez chorar. O livro de capa vermelha ficou para mim, as manchas das lágrimas nunca saíram, e ainda me fazem sorrir.
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